Segunda oportunidade (Parte II)
(continuação)
No seu peito um enorme aperto provocava-lhe alguma dificuldade em respirar e talvez fosse isso mesmo que ele precisava, deixar de respirar. No rosto, sentiu o leito molhado das lágrimas que fugiam dos seus olhos e que traziam o sabor salgado da saudade, da angústia e sobretudo do remorso que sentia.
Permaneceu imóvel e em silêncio, com o seu olhar no infinito e o seu rosto sem qualquer expressão, lívido. Em cima da urna, uma coroa de rosas brancas e ao centro uma moldura onde constava uma fotografia a preto e branco. No meio das rosas sobressaía o rosto de uma jovem, que não teria mais de vinte anos e um sorriso lindo. Se a fotografia fosse a cores, e não a preto e branco, seria possível ver que os seus olhos eram castanhos e que o seu cabelo liso e comprido era cor de avelã. Era a sua filha quem ali estava. Naquela fotografia. Naquela urna.
Não conseguiu continuar a encarar aquele cenário e baixou a cabeça, permanecendo imóvel, observando, sem ver, o chão que tinha aos seus pés. Sentia o seu peito a arder, sentia uma dor atroz que o consumia. Queria morrer, queria estar no lugar dela.
Terminada a cerimónia, as pessoas que a ela assistiam começaram a abandonar o cemitério, passando por ele, no mais profundo e completo silêncio sem que lhe dirigissem uma única palavra. Permaneceu imóvel. A sua cabeça continuava baixa. Os seus olhos continuavam a fitar o chão. Não sabe quanto tempo assim permaneceu. Cinco minutos, dez minutos, talvez quinze minutos? Quem sabe?
Foi então que ganhou coragem e ergueu a cabeça, olhando novamente na direção da sua filha, na direção da urna. Ao início não queria acreditar no que os seus olhos viam. Será que estavam a pregar-lhe uma partida? Será que estava a ter alguma alucinação? Será que aquilo tudo era real? À sua frente não havia agora ninguém, apenas a urna castanho escura com uma coroa de rosas brancas e a fotografia a preto e branco.
Não! Não! Não, era apenas a urna que ali estava. Ao seu lado, e outrora oculta pelas pessoas que assistiam ao funeral, estava agora visível uma outra urna, também ela com uma coroa de rosas brancas em cima e ao centro uma moldura com uma fotografia a preto e branco. Na fotografia estava um homem que teria cerca de cinquenta anos. Na moldura estava a sua fotografia. Era ELE quem ali estava. Era ELE quem estava naquela urna.
As suas pernas não resistiram mais e caiu de joelhos. De um momento para o outro tudo ficou negro. Tudo ficou na mais completa e solitária escuridão.
Foi então que de repente uma luz intensa surgiu, e incindindo diretamente no seu rosto, nas suas pálpebras fechadas, assumiu uma tonalidade de um vermelho intenso. Sentiu que tinha os olhos cerrados e fez um esforço hercúleo para os abrir. À medida que as suas pálpebras se entreabriam lentamente, a sua retina era encandeada pela luz forte que incidia diretamente no seu rosto. Tornou a cerrar as pálpebras, para novamente as tentar reabrir. Foram precisos alguns instantes para conseguir abrir os olhos e perceber o que o rodeava. Os seus ouvidos começaram a captar os sons que o rodeavam, deixando antever a confusão que o cercava. Mas, …, havia algo que não batia certo. Abriu e fechou os olhos por diversas vezes e quando conseguiu focar o seu olhar reparou que tudo estava ao contrário. Tudo estava de pernas para o ar.
Naquele instante outro sentido despertou e sentiu um cheiro forte, um cheiro intenso, um cheiro desagradável. As suas narinas dilataram-se e deixaram entrar o cheiro a combustível, provocando-lhe um ardor nos pulmões. Sentia-se desorientado, sentia o seu corpo preso, rígido, tenso. Ainda assim, rodou ligeiramente a cabeça e percebeu que havia alguém ao seu lado. Continuou a rodar a cabeça e foi então que viu o rosto da sua filha, um rosto que não apresentava a sua cor normal, mas sim um vermelho vivo. Um rosto coberto de sangue.
De um momento para o outro, tudo ficou negro outra vez, e ele regressou à mais completa escuridão. Não sabe quanto tempo assim permaneceu. Minutos, horas, dias, meses, anos, para a eternidade? Não sabe. Perdeu a total noção de tempo, perdeu a completa noção da realidade.
No meio daquela escuridão vários pensamentos surgiram na sua mente. Estaria vivo ou morto? Poderia ter morrido e continuar a pensar? Não sabia. Não tinha respostas. Foi então que uma memória surgiu de repente. Lembrava-se de ter estado numa festa com a sua filha e de ter bebido nessa noite. Uma bebida. Não, …, talvez tivessem sido duas. Não, …, talvez três ou quatro, talvez mais. Lembrava-se de ter saído da festa e de a sua filha insistir para que ele não conduzisse. Lembrava-se de ele dizer que estava em condições e de se sentar ao volante. Lembrava-se de que era de noite e, de repente, talvez por ter fechado os olhos tudo ficou escuro, …, muito escuro, …, até ouvir um grito ensurdecedor, abrir os olhos, ver um clarão, ouvir um estrondo e então tudo começou a andar à roda. Depois apenas se lembrava do rosto da filha coberto de sangue.
Algo que não batia certo. Vira o rosto da filha coberto de sangue, a urna dela ao lado da sua própria urna. Estariam os dois mortos? E se sim, como poderia ele continuar a pensar? Porque é que a sua mente não estava condenada ao vazio eterno, remetida ao vácuo da escuridão?
Foi então que a escuridão começou a ser atenuada por uma ligeira luz que despontava para lá das suas pálpebras. Gradualmente, a luz foi ganhando intensidade, tornando-se avermelhada devido às suas pálpebras cerradas. Fez um esforço para abrir os olhos, mas sentia um peso enorme, quase como uma tonelada. Não desistiu e conseguiu semicerrar os olhos. Depois de algum esforço conseguiu perceber uma enorme superfície branca, na qual despontavam alguns focos de luz que o encandeavam. Abriu os olhos lentamente e percebeu que estava a olhar para um teto branco no qual havia vários focos de luz.
No seu ângulo de visão surgiu então um rosto de um homem de meia idade e de cabelo grisalho.
- Boa tarde! Está a ouvir-me?
- S-s, …, s-sim. – conseguiu dizer. Depois fazendo um esforço enorme, perguntou. – O-onde é q-que eu e-estou?
- Está no hospital! Teve um acidente de viação! Por favor tente não falar!
- E …, e …, e a minha filha? Ela está bem?
O rosto do médico que estava à sua frente assumiu uma expressão grave.
- E-e-ela …, …, e-e-ela morreu? – pronunciou a muito custo à medida que as lágrimas corriam rosto abaixo.
- Ela está …, em estado grave. – respondeu o médico. - Mas vai sobreviver.
Ela estava viva. Ela iria sobreviver e tudo não havia passado de pesadelos que ele tivera enquanto estivera em coma. Pesadelos tão vívidos que pareciam ser reais. Mas, agora sabia que tinham sido apenas isso e que a vida lhe dava uma segunda oportunidade.