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Escrita Solta

Escrita Solta

05
Jun21

Segunda oportunidade (Parte II)

Fernando Varela

(continuação)

No seu peito um enorme aperto provocava-lhe alguma dificuldade em respirar e talvez fosse isso mesmo que ele precisava, deixar de respirar. No rosto, sentiu o leito molhado das lágrimas que fugiam dos seus olhos e que traziam o sabor salgado da saudade, da angústia e sobretudo do remorso que sentia.

Permaneceu imóvel e em silêncio, com o seu olhar no infinito e o seu rosto sem qualquer expressão, lívido. Em cima da urna, uma coroa de rosas brancas e ao centro uma moldura onde constava uma fotografia a preto e branco. No meio das rosas sobressaía o rosto de uma jovem, que não teria mais de vinte anos e um sorriso lindo. Se a fotografia fosse a cores, e não a preto e branco, seria possível ver que os seus olhos eram castanhos e que o seu cabelo liso e comprido era cor de avelã. Era a sua filha quem ali estava. Naquela fotografia. Naquela urna.

Não conseguiu continuar a encarar aquele cenário e baixou a cabeça, permanecendo imóvel, observando, sem ver, o chão que tinha aos seus pés. Sentia o seu peito a arder, sentia uma dor atroz que o consumia. Queria morrer, queria estar no lugar dela.

Terminada a cerimónia, as pessoas que a ela assistiam começaram a abandonar o cemitério, passando por ele, no mais profundo e completo silêncio sem que lhe dirigissem uma única palavra. Permaneceu imóvel. A sua cabeça continuava baixa. Os seus olhos continuavam a fitar o chão. Não sabe quanto tempo assim permaneceu. Cinco minutos, dez minutos, talvez quinze minutos? Quem sabe?

Foi então que ganhou coragem e ergueu a cabeça, olhando novamente na direção da sua filha, na direção da urna. Ao início não queria acreditar no que os seus olhos viam. Será que estavam a pregar-lhe uma partida? Será que estava a ter alguma alucinação? Será que aquilo tudo era real? À sua frente não havia agora ninguém, apenas a urna castanho escura com uma coroa de rosas brancas e a fotografia a preto e branco.

Não! Não! Não, era apenas a urna que ali estava. Ao seu lado, e outrora oculta pelas pessoas que assistiam ao funeral, estava agora visível uma outra urna, também ela com uma coroa de rosas brancas em cima e ao centro uma moldura com uma fotografia a preto e branco. Na fotografia estava um homem que teria cerca de cinquenta anos. Na moldura estava a sua fotografia. Era ELE quem ali estava. Era ELE quem estava naquela urna.

As suas pernas não resistiram mais e caiu de joelhos. De um momento para o outro tudo ficou negro. Tudo ficou na mais completa e solitária escuridão.

Foi então que de repente uma luz intensa surgiu, e incindindo diretamente no seu rosto, nas suas pálpebras fechadas, assumiu uma tonalidade de um vermelho intenso. Sentiu que tinha os olhos cerrados e fez um esforço hercúleo para os abrir. À medida que as suas pálpebras se entreabriam lentamente, a sua retina era encandeada pela luz forte que incidia diretamente no seu rosto. Tornou a cerrar as pálpebras, para novamente as tentar reabrir. Foram precisos alguns instantes para conseguir abrir os olhos e perceber o que o rodeava. Os seus ouvidos começaram a captar os sons que o rodeavam, deixando antever a confusão que o cercava. Mas, …, havia algo que não batia certo. Abriu e fechou os olhos por diversas vezes e quando conseguiu focar o seu olhar reparou que tudo estava ao contrário. Tudo estava de pernas para o ar.

Naquele instante outro sentido despertou e sentiu um cheiro forte, um cheiro intenso, um cheiro desagradável. As suas narinas dilataram-se e deixaram entrar o cheiro a combustível, provocando-lhe um ardor nos pulmões. Sentia-se desorientado, sentia o seu corpo preso, rígido, tenso. Ainda assim, rodou ligeiramente a cabeça e percebeu que havia alguém ao seu lado. Continuou a rodar a cabeça e foi então que viu o rosto da sua filha, um rosto que não apresentava a sua cor normal, mas sim um vermelho vivo. Um rosto coberto de sangue.

De um momento para o outro, tudo ficou negro outra vez, e ele regressou à mais completa escuridão. Não sabe quanto tempo assim permaneceu. Minutos, horas, dias, meses, anos, para a eternidade? Não sabe. Perdeu a total noção de tempo, perdeu a completa noção da realidade.

No meio daquela escuridão vários pensamentos surgiram na sua mente. Estaria vivo ou morto? Poderia ter morrido e continuar a pensar? Não sabia. Não tinha respostas. Foi então que uma memória surgiu de repente. Lembrava-se de ter estado numa festa com a sua filha e de ter bebido nessa noite. Uma bebida. Não, …, talvez tivessem sido duas. Não, …, talvez três ou quatro, talvez mais. Lembrava-se de ter saído da festa e de a sua filha insistir para que ele não conduzisse. Lembrava-se de ele dizer que estava em condições e de se sentar ao volante. Lembrava-se de que era de noite e, de repente, talvez por ter fechado os olhos tudo ficou escuro, …, muito escuro, …, até ouvir um grito ensurdecedor, abrir os olhos, ver um clarão, ouvir um estrondo e então tudo começou a andar à roda. Depois apenas se lembrava do rosto da filha coberto de sangue.

Algo que não batia certo. Vira o rosto da filha coberto de sangue, a urna dela ao lado da sua própria urna. Estariam os dois mortos? E se sim, como poderia ele continuar a pensar? Porque é que a sua mente não estava condenada ao vazio eterno, remetida ao vácuo da escuridão?

Foi então que a escuridão começou a ser atenuada por uma ligeira luz que despontava para lá das suas pálpebras. Gradualmente, a luz foi ganhando intensidade, tornando-se avermelhada devido às suas pálpebras cerradas. Fez um esforço para abrir os olhos, mas sentia um peso enorme, quase como uma tonelada. Não desistiu e conseguiu semicerrar os olhos. Depois de algum esforço conseguiu perceber uma enorme superfície branca, na qual despontavam alguns focos de luz que o encandeavam. Abriu os olhos lentamente e percebeu que estava a olhar para um teto branco no qual havia vários focos de luz.

No seu ângulo de visão surgiu então um rosto de um homem de meia idade e de cabelo grisalho. 

  • Boa tarde! Está a ouvir-me?
  • S-s, …, s-sim. – conseguiu dizer. Depois fazendo um esforço enorme, perguntou. – O-onde é q-que eu e-estou?
  • Está no hospital! Teve um acidente de viação! Por favor tente não falar!
  • E …, e …, e a minha filha? Ela está bem?

O rosto do médico que estava à sua frente assumiu uma expressão grave.

  • E-e-ela …, …, e-e-ela morreu? – pronunciou a muito custo à medida que as lágrimas corriam rosto abaixo.
  • Ela está …, em estado grave. – respondeu o médico. - Mas vai sobreviver.

Ela estava viva. Ela iria sobreviver e tudo não havia passado de pesadelos que ele tivera enquanto estivera em coma. Pesadelos tão vívidos que pareciam ser reais. Mas, agora sabia que tinham sido apenas isso e que a vida lhe dava uma segunda oportunidade.

30
Mai21

Segunda Oportunidade (Parte I)

Fernando Varela

Era de manhã cedo quando o despertador tocou. Ainda não eram sete horas e o quarto, que se fazia iluminar pelos primeiros raios de sol daquela manhã, foi inundado pelo barulho irritante do alarme do despertador. Não precisara dele para acordar pois passara toda a noite acordado, revivendo vezes sem conta aquele pesadelo que se repetia continuamente sem parar.

A cada repetição a sua angústia aumentava, deixando-o num estado de profunda depressão. Levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho. Despiu-se e entrou no poliban para tomar um duche, abrindo de imediato a torneira da água fria. Lá do alto, uma torrente de água gelada caiu sobre o seu corpo, torturando-o, e ele aceitou esse castigo pois merecia-o. Merecia talvez muito mais do que isso.

Deixou que a água caísse sobre ele, permanecendo num estado quase catatónico. Os seus olhos contemplavam o acinzentado do azulejo numa expressão vazia, quase sem vida. Cerca de dez minutos depois levou a mão direita em direção à torneira, não para abrir a água quente, mas sim para a fechar. Saiu do poliban e pegando na toalha que repousava no toalheiro cromado, secou o seu corpo rígido e tenso.

Dirigiu-se para o quarto e abriu o roupeiro. Não precisou de mais de dois minutos para que tivesse vestido umas calças pretas de tecido, uma camisa preta e calçado uns sapatos pretos. Do roupeiro retirou ainda um blazer, também ele preto, e depois de o vestir olhou para o espelho que havia numa das portas. Por momentos não reconheceu o homem que se encontrava diante dele. À sua frente tinha um homem magro, de cerca de cinquenta anos e com um metro e noventa de altura. A sua cara estava abatida. Os seus olhos não tinham expressão e por debaixo destes duas enormes olheiras desfiguravam o seu rosto.

Foi até à sala e pegando num molho de chaves saiu de casa fechando atrás de si a porta do apartamento. Desceu devagar os lanços de escada que o levariam do quarto andar até à rua, onde caminhou com passo decidido, embora não muito rápido. À sua volta o normal bulício de uma cidade numa manhã de quarta-feira. Carros que circulavam apressados de um lado para o outro, motas que deambulavam no meio do trânsito e que faziam ouvir o barulho dos seus escapes acima do barulho do tráfego. Pessoas calcorreavam o passeio num passo apressado de quem vai para o trabalho ou para a escola. Não era o seu caso. Ainda assim tinha para onde ir, mas não tinha pressa de lá chegar. Podia mesmo dizer que não queria lá ir, mas tinha de o fazer. Precisava de o fazer.

Continuou a caminhar serenamente, sem pensar para onde, como se de um autómato se tratasse em que tivesse sido programado aquele percurso. Caminhava completamente indiferente a tudo quanto o rodeava. Quarenta minutos bastaram para que se encontrasse diante de um portão largo e alto, com grades de ferro pretas. Para lá deste, um mundo completamente diferente, um mundo de silêncio.

Parado defronte ao portão, fez um compasso de espera, findo o qual ganhou coragem para avançar. Avançou, e passo a passo, caminhou na sua direção transpondo-o até se encontrar num largo de empedrado branco, de pedra calcária, que havia do outro lado. No meio, um círculo relvado onde uma estátua de mármore branco sobressaía. A toda a volta do largo irradiavam diversas alamedas de onde nasciam diversas ruas, que por sua vez davam origem a ruas mais estreitas, numa malha que havia sido tecida ao longo do tempo.

Atravessou o largo, em direção à alameda que havia em frente. De ambos os lados, altos ciprestes verdes se erguiam, como se de uma guarda de honra se tratassem, projetando a sua sombra ao longo do caminho. Construções brancas, de granito ou de mármore, todas elas encimadas por uma cruz, ou uma águia, tinham sido erigidas ao longo desta, e ali permaneciam, imóveis, numa homenagem silenciosa a quem um dia tinha entrado naquele mundo. Percorreu a alameda, em passo decidido e ao chegar ao fim deparou-se com uma ampla visão sobre a colina que se explanava aos seus pés. Ao longe na paisagem, cerca de quinhentos metros mais abaixo, um pouco descaído para a sua esquerda, um grupo de pessoas encontrava-se reunido, a maior parte delas de costas para ele.

Recomeçou a andar, percorrendo o cemitério na sua direção, tentando manter sempre o seu caminhar firme. A cada passo, sentia as suas pernas cada vez mais pesadas, como que protestando para que ele parasse e não continuasse a percorrer aquele caminho. Mas, tinha de ser forte, tinha que as contrariar. Contrariar as suas fraquezas, seguir em frente, percorrendo aquele caminho, um passo atrás do outro.

Quando faltava apenas uma dezena de metros para alcançar aquele o grupo de pessoas que se mantinha, imóvel e em silêncio, decidiu parar. Permaneceria ali. À sua frente duas a três dezenas de pessoas, a maioria delas vestidas de preto. O silêncio era ensurdecedor.

Por entre aqueles vultos era possível perceber um objeto retangular de cor castanho escura, feito em madeira. Não precisava de se aproximar para saber perfeitamente quem se encontrava dentro daquela urna e isso provocava-lhe um sofrimento atroz. Sentiu as suas pernas a tremer como se a qualquer momento fraquejassem e fossem incapazes de suportar o seu peso. Permaneceu imóvel, incapaz de dar mais algum passo, pois agora as suas pernas pesavam toneladas e não havia forma de as conseguir movimentar.

(Continua ...)

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