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Escrita Solta

Escrita Solta

15
Jul20

Lago da Memória (Parte II)

Fernando Varela

Ali se deixou estar o resto da manhã, sentado ao seu lado, e ali voltaria à tarde para estar de novo junto dEla. Passava os dias a contar-lhe as memórias do que haviam vivido, e enquanto ele as revivia, para Ela era como se estivesse a viver uma aventura, como se as vivesse pela primeira vez, pois o seu cérebro não guardava qualquer registo delas, por mais ligeiro que fosse. Mas, ainda assim, Ela gostava da sua companhia. Já muitas vezes lho dissera, e sempre que ele se ia embora, Ela perguntava "Amanhã voltas?". "Sim, amor.", dizia ele, ao mesmo tempo que lhe dava um beijo na testa, para depois lhe dar outro naqueles lábios, que outrora haviam sido carnudos, mas que ainda guardavam o doce sabor daquele amor que os dois viveram, que os dois ainda viviam, mas que agora ele se encarregava de viver por ambos.

Sentia-se perdido sempre que saía de perto dEla. Não sabia o que fazer, pois vivera grande parte da sua vida ao seu lado e agora encontrava-se sozinho. A sua vida já não era mais a mesma coisa. Deixara de fazer sentido, o mesmo sentido que antes fazia ao lado dEla. Mantinha algumas das suas rotinas básicas, como ir ao supermercado comprar comida, mas tal não passava de uma questão de sobrevivência, que lhe permitiria passar mais um dia ao seu lado. Por vezes, e quando era chegada a época, gostava de comprar morangos, sempre que, pelo seu aroma, percebia que estavam maduros e que o seu sabor seria adocicado, pois sabia que Ela gostava. Nessas alturas, lavava muito bem os morangos, arranjava-os, retirando o pedúnculo e as folhas verdes, e gentilmente os acondicionava, num recipiente de vidro, que levaria consigo, aquando da sua próxima visita, para lhe dar à boca, um por um.

Longe dEla, vivia na mais completa solidão, ansiando fervorosamente pelo momento em que voltasse a estar ao seu lado. Os dias sucediam-se, assim como os domingos, em que ele sempre passava pela florista antes de ir até à casa de repouso. “Bom dia!”, dissera-lhe a florista quando, num domingo como tantos outros, o viu parado a observar as rosas vermelhas que estavam num expositor à entrada. “Bom dia.”, respondeu ele, e continuando “Queria a rosa vermelha mais bonita, mais perfeita que tiver.”. A florista não precisava de o ouvir para saber o que ele procurava. De imediato havia começado a observar as rosas em busca daquela, da mais perfeita. Por diversas vezes pegara numa rosa, içara-a e, rodando-a na sua mão, observara-a cuidadosamente. Por diversas vezes a voltou a pousar, junto das restantes rosas, para de imediato pegar noutra, e a observar mais de perto. Repetiu este processo até que “Tome! Leve esta. É a mais perfeita de todas”. Ele retirou uma nota da carteira para pagar, ao mesmo tempo que lhe agradecia “Obrigado.”.  Ao receber a nota, a florista voltou a comentar com ele “Parece que hoje é novamente um dia especial. As rosas pressentem-no, e todas elas estão lindas. Todas elas estão perfeitas. É difícil escolher a mais perfeita de todas.”. Ele não podia concordar mais. “Tem razão, hoje é um dia especial. Hoje, fazemos trinta anos de casados.”. Pegou na rosa, e como sempre fazia aos domingos foi até à beira do lago onde, por alguns momentos, se sentou naquele banco de madeira, antes de ir ter com Ela.

Não sabe precisar quanto tempo ali esteve. Um quarto de hora, meia-hora talvez, ou mesmo uma hora. Não sabe. Quando se sentiu preparado, levantou-se e caminhou em direção à casa de repouso, em direção ao seu jardim e àquele banco que havia à beira do lago. Caminhou em direção a Ela. Como habitualmente, Ela estava sentada no mesmo banco de jardim, voltada para a água. Ao se aproximar dEla, reparou que tinha o mesmo ar sereno de sempre, como se aguardasse pacientemente pela sua chegada, ainda que, como acontecia todas as vezes, não se lembrasse dele, não o reconhecesse.         

Quando chegou junto do banco de jardim, e Ela desviou o olhar na sua direção, ele disse "Olá!". "Olá!", respondeu-lhe Ela. "Toma!", continuou ele, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para lhe oferecer a rosa vermelha que trazia consigo. "É para mim?", quis saber Ela. "Sim. Hoje, fazemos trinta anos de casados.", respondeu ele enquanto se sentava ao seu lado para, junto dela, reviver de novo as memórias de uma vida.

Os dias passavam, as semanas também, e ele mantinha a mesma rotina de sempre. Todos os dias A visitava na casa de repouso. Todos os dias passava horas ao seu lado, conversando com Ela, fazendo-a reviver aquele amor, guardando os momentos especiais para os domingos, dias esses em que comprava na florista a mais perfeita rosa vermelha. 

Assim passou o outono e o inverno logo a seguir. A sua rotina diária mantinha-se inalterada, fizesse chuva ou fizesse sol. Nos dias de chuva, a pequena alteração que porventura poderia existir seria o facto de Ela não estar sentada no banco de jardim, junto ao lago, mas sim numa cadeira de baloiço que havia no seu quarto, mesmo ao lado da janela.

A primavera chegara, e aquele era apenas mais um domingo de maio. Como era seu hábito aos domingos, levantara-se de manhã cedo, arranjara-se, tomara o pequeno-almoço e ainda não eram nove horas da manhã quando saiu de casa. Antes de seguir em direção ao lago passou pela florista para comprar uma rosa vermelha. Não demorou muito a fazer o caminho até à florista, mas, uma vez lá, reparou em algo de diferente. Não havia rosas vermelhas. "Talvez as tenha guardadas sem ser à vista.", pensou ele, e foi nesse preciso instante que ouviu a florista a falar consigo. "Bom dia!". "Bom dia!", respondeu ele. "Hoje ainda não colocou as rosas vermelhas em exposição!", afirmou, convencido de que a florista as guardava algures no interior da loja. "Lamento, não sei o que aconteceu. Hoje não havia rosas vermelhas." respondeu-lhe a florista desapontada. Depois, continuando disse, "Não quer antes levar uma rosa branca? Eu sei que não é a mesma coisa, mas hoje as brancas também estão muito bonitas.". Por instantes pensou na sugestão e hesitou. "Hum!!!, ..., ..., não sei, ..., ..., está bem! Lá terá que servir!" A florista começou então a escolher a rosa Branca mais perfeita que ali estava. Depois de umas quantas hesitações estendeu-lhe aquela que lhe parecia ser a mais perfeita de todas. "Desculpe, posso fazer-lhe uma pergunta?", quis saber a florista. "Claro que sim.", respondeu ele. "Hoje não havia rosas vermelhas. Não é um dia especial?", questionou ela. "Hoje, é o casamento da nossa neta. É um dia muito especial.", respondeu ele, e depois continuou, "Mas, se não há rosas vermelhas, a Branca vai ter de servir.".

Pagou a rosa, e despedindo-se da florista caminhou em direção ao lago onde, e como habitualmente fazia, se sentou sozinho no banco de madeira junto à margem. Quase uma hora depois levantou-se e caminhou até à casa de repouso. Ao passar o portão dirigiu-se para o banco de jardim que havia à beira do lago, pois sabia que Ela já lá estaria. Foi então que parou de repente. O banco estava vazio, Ela não estava lá. Naquele instante sentiu que lhe tocavam no braço e voltou-se. Era uma senhora baixa, um pouco forte, vestindo uma bata azul clara. Era uma funcionária da casa de repouso. "Lamento, mas,..., não sei como lhe dizer,…, mas,…,  a sua esposa faleceu esta noite." Ao ouvir aquelas palavras não conseguiu evitar que as lágrimas corressem rosto abaixo. "Os meus sentimentos.", continuou a funcionária, afastando-se sabendo que naquele momento não haveria palavras que curassem tamanha dor. Sentia a sua voz de tal forma embargada, que apenas conseguiu pronunciar um pouco audível "Obrigado.", antes de a funcionária se afastar.

Ao ficar sozinho, encaminhou-se até à margem do lago, e gentilmente pousou a rosa Branca na água, ficando a vê-la afastar-se. "As rosas, pressentem-no". Agora estava sozinho. Tinha perdido a sua mulher, a sua rosa de uma vida.

Talvez um dia se voltassem a encontrar.

Agora restava-lhe apenas a sua memória.

08
Jul20

Lago da Memória (Parte I)

Fernando Varela

Era um domingo como tantos outros. Levantara-se de manhã cedo, arranjara-se, tomara o pequeno-almoço e antes das nove horas estava a sair de casa. Ia para cinco anos que continuava a fazer aquela rotina, todos os domingos, ainda que agora o fizesse sozinho. Outrora fizera-o com ela. Saíam os dois de manhã cedo, de braço dado, passeando junto ao lago. Faziam-no calmamente, sem pressa, aproveitando para recordar os momentos especiais que viveram juntos. Em dias de bom tempo, chegavam mesmo a passar toda a manhã sentados num banco de madeira, que havia de frente para o lago, sem que dessem pelo passar do tempo. Mas há cinco anos, tudo mudara. Agora, mesmo com oitenta anos, ele continuava a fazê-lo, ainda que sozinho.

Saiu de casa e caminhou em direção ao lago. Era uma manhã de outono. No ar, aquele cheiro característico de neblina e de folhas molhadas. Na sua mão, levava uma rosa vermelha, linda, perfeita. " As rosas hoje estão lindas. Estão mais perfeitas do que nos outros dias. Hoje deve ser um dia especial. As rosas pressentem-no, sabia? ", dissera-lhe a florista. "É verdade.", respondera ele, "Hoje, fazemos vinte e cinco anos de casados.". Sempre que comprava uma rosa, coincidência, ou não, a florista comentava com ele que, aquele era um dia especial, pois as rosas nesse dia estavam perfeitas. Talvez ela não soubesse, mas efetivamente eram dias especiais. "Hoje, vou pedi-la em namoro.", "Hoje, vou pedi-la em casamento.", "Hoje, ficámos noivos", "Hoje, vamos casar.", "Hoje, é o seu aniversário.", "Hoje, fazemos um ano de casados.", "Hoje, é dia de S. Valentim.", "Hoje, fazemos cinco anos de casados.", "Hoje fazemos dez anos de casados.", …

Agora sozinho, deixava-se ficar sentado naquele banco, de frente para a água, com a rosa vermelha pousada nas suas pernas. Tanto podia ficar meia hora, como uma hora, dependia. Ela fazia-lhe falta, e por vezes parecia-lhe sentir a mão dEla pousada na sua perna, mas era apenas uma ilusão, apenas isso. Depois levantava-se, e calmamente percorria o caminho que circundava o lago até uma antiga pousada, que do lado oposto, por detrás de uns quantos ciprestes, espreitava aquele espelho de água. Era um edifício comprido, de três pisos, onde na sua fachada cor-de-rosa, as janelas surgiam emolduradas por uma pedra branca, e era encimado por um telhado vermelho vivo feito em telha. Aquela antiga pousada, em tempos abandonada, fora recuperada, transformando-se numa casa de repouso junto ao lago. Não demorara mais de trinta minutos para que ele cruzasse o portão verde de metal que se encontrava aberto. Como sempre fazia, atravessou o jardim no seu passo lento, mas decidido, em direção a um banco que havia perto da margem, voltado para o lago. Nele estava sentada uma mulher de cabelos, agora brancos, mas que, um dia quando a conhecera, haviam sido castanhos, cor de avelã. Caminhou até ao banco e sentou-se ao seu lado. "Olá!", disse ele. "Olá!", respondeu-lhe Ela. "Toma. Hoje, fazemos vinte e cinco anos de casados.", disse ele ao mesmo tempo que, estendendo a mão, lhe oferecia a rosa vermelha que trouxera consigo. Não era verdade. Estavam casados há trinta anos, mas isso ficaria para outro domingo, não aquele. Todos os dias ele ia ter com Ela, mas apenas aos domingos levava consigo uma rosa vermelha para lhe oferecer, e todos os domingos eram uma data especial. "A sério?", foi a resposta dEla.

Tinha sido há trinta anos que se haviam casado e durante todo esse tempo tinham-se amado e sido felizes. Aqueles últimos oito anos eram a prova viva daquele amor, do amor que ele tinha por Ela. Foi por essa altura, quando Ela tinha setenta e quatro anos, que a doença se começou a revelar, e como doença degenerativa que era, não demorou muito para que o Alzheimer fizesse com que Ela se esquecesse dele e da vida em comum vivida a dois. Mas, se Ela se esquecia, o seu amor não desaparecia, pois era como que transferido para ele, que via o seu amor por Ela aumentar a cada dia que passava. Amara-A grande parte da sua vida, e ainda continuava a amá-La. Iria amá-La até um dia ele morrer. Ao seu lado estava Ela. A mulher da sua vida.

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