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Escrita Solta

Escrita Solta

04
Jul21

O encontro

Fernando Varela

Pegou no banco que tinha na casa de banho e subindo para cima dele olhou-se ao espelho. Era sexta-feira à tarde e sentia que o seu nervosismo aumentava, mas não havia nada que pudesse fazer, do alto do seu metro e quarenta, para o contrariar. 

Nessa noite iria ter um encontro com uma mulher dois anos mais nova do que ele com quem falava através de uma aplicação de encontros. Não era isso que o deixava nervoso, mas sim o facto do seu perfil ter uma fotografia de um homem de um metro e oitenta. Não que ele fosse feio, que não o era, mas o facto de ser anão fazia com que as mulheres o vissem com um olhar diferente, muitas vezes de pena, de compaixão, ou até de curiosidade, mas muito dificilmente de amor ou de desejo. 

À mesma hora, do outro lado da cidade, também ela se sentia nervosa e indecisa sobre o que devia vestir. Há quase uma hora que estava em frente ao espelho e não gostara de nada do que tivesse vestido. O que quer que fosse que ela experimentasse não escondia o seu corpo  de bodybuilder. Adorava o seu corpo, não era essa a questão, mas tão somente o facto da sua fotografia de perfil ser a de uma rapariga magra, cuja estrutura nada  tinha nada a ver com aquele corpo trabalhado e musculado. 

Pouco passava das sete da tarde quando ele chegou ao jardim onde haviam marcado o encontro, levando na mão uma rosa vermelha, para que ela o reconhecesse. O seu nervosismo aumentava e o seu coração batia aceleradamente. A cada mulher que se aproximava olhava para as suas mãos em busca de uma rosa branca, sinal de que seria ela, mas nunca viu tal rosa. 

Olhou para o relógio que trazia no pulso esquerdo e reparou que já ali estava havia quase uma hora. 

Foi nesse preciso momento que reparou numa mulher que se aproximava e que nas mãos trazia uma rosa… branca. Sem pensar em mais nada, avançou na sua direção. 

Reparou então que trazia vestido uma saia curta de ganga e uma t-shirt preta, que deixavam perceber um corpo muito musculado. 

- Olá…, tu é que és a Sandra? A tua fotografia é muito diferente! 

- Sim. - respondeu ela. - Tive receio de colocar a minha fotografia pois muitos homens não se sentem confortáveis em ter um encontro com alguém que tenha um corpo tão musculado. - fez uma pausa e continuou. - Tu deves ser o João, mas…, também não tens a altura que está na fotografia.

- Tal como tu também tive receio de colocar a minha fotografia, devido ao meu problema de nanismo. - respondeu ele. 

- Quer então dizer que ambos tivemos receio em colocar a nossa fotografia não conseguiríamos qualquer encontro?

- Bem…, sim. - respondeu ele. 

- Quem sabe não fomos feitos um para o outro? - perguntou ela. 

Foi nesse preciso instante que ambos se riram, e rindo saíram do jardim rumo a um encontro que talvez viesse a mudar as suas vidas.

Desafio dos pássaros - Tema #4

 https://desafiodospassaros.blogs.sapo.pt/ 

06
Mar20

Desafio de escrita dos pássaros #2.6 - O vírus

Fernando Varela

Algo de estranho se passava no mundo, nos últimos tempos. Não acontecia apenas num país, ou noutro, mas sim, em todo o planeta. Nos últimos meses, pessoas caíam ao chão, inanimadas, e em poucos minutos, nada mais havia a fazer senão declarar o seu óbito, a sua morte.

Ninguém sabia ao certo o que atingia a população mundial, pois não havia nenhuma relação entre as vítimas que, acometidas por aquele "ataque", em poucos minutos viam-se privadas da sua vida. Não havia nada em comum entre elas, não havia sequer qualquer relação. Seria um vírus? Era possível. Era até o mais provável, mas não havia certezas. Ninguém sabia ao certo.

Estava no hospital, mais concretamente na morgue, para autopsiar mais um caso de morte inesperada. Não havia qualquer pista. Pegou na ficha que estava junto à mesa de autópsia. "Indivíduo do sexo masculino. Noventa e três anos". À semelhança de todos os outros que autopsiara nos últimos meses, também este tinha mais de noventa anos. Raros eram os casos em que tinham menos. A desproporção era tal, que seria talvez a exceção que confirma a regra. Seria a idade um fator decisivo, uma vulnerabilidade face ao vírus?

Começou a autópsia. Ainda não havia passado meia hora, quando descobriu implantado bem fundo no cérebro, um minúsculo microchip. Algo de um tamanho tão mínimo, que só por acaso, o poderia ter descoberto. Será que nas outras vítimas também lá estaria, e não se apercebera? Retirou-o. No final da autopsia haveria de o levar até ao seu gabinete onde tentaria aceder à sua informação. Como curioso que era ao nível da eletrónica possuía equipamentos que poderiam aceder ao conteúdo do chip.

A primeira análise mostrava que estava encriptada. O processo de a desencriptar era lento, mas ao fim de uma semana acabaria por ter sucesso: "count>32782 / system shutdown".

O que seria aquilo? Que tipo de instrução seria aquela? Que número era aquele? "32782"?

Durante meses, aquele número martelou-lhe a cabeça, até que, como se de uma epifania se tratasse, descobriu que correspondia ao número exato de dias que havia em noventa anos. Seria aquilo a causa das mortes? Seria aquilo uma eutanásia programada? Não queria acreditar nisso.

"system failure / error 999 / immediate shutdown"

De um momento para o outro, tudo ficou escuro, e o médico caiu ao chão, inanimado, morto.

O vírus continuava a ser isso, apenas mais um vírus.

© Fernando Varela

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