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Escrita Solta

Escrita Solta

05
Jun21

Segunda oportunidade (Parte II)

Fernando Varela

(continuação)

No seu peito um enorme aperto provocava-lhe alguma dificuldade em respirar e talvez fosse isso mesmo que ele precisava, deixar de respirar. No rosto, sentiu o leito molhado das lágrimas que fugiam dos seus olhos e que traziam o sabor salgado da saudade, da angústia e sobretudo do remorso que sentia.

Permaneceu imóvel e em silêncio, com o seu olhar no infinito e o seu rosto sem qualquer expressão, lívido. Em cima da urna, uma coroa de rosas brancas e ao centro uma moldura onde constava uma fotografia a preto e branco. No meio das rosas sobressaía o rosto de uma jovem, que não teria mais de vinte anos e um sorriso lindo. Se a fotografia fosse a cores, e não a preto e branco, seria possível ver que os seus olhos eram castanhos e que o seu cabelo liso e comprido era cor de avelã. Era a sua filha quem ali estava. Naquela fotografia. Naquela urna.

Não conseguiu continuar a encarar aquele cenário e baixou a cabeça, permanecendo imóvel, observando, sem ver, o chão que tinha aos seus pés. Sentia o seu peito a arder, sentia uma dor atroz que o consumia. Queria morrer, queria estar no lugar dela.

Terminada a cerimónia, as pessoas que a ela assistiam começaram a abandonar o cemitério, passando por ele, no mais profundo e completo silêncio sem que lhe dirigissem uma única palavra. Permaneceu imóvel. A sua cabeça continuava baixa. Os seus olhos continuavam a fitar o chão. Não sabe quanto tempo assim permaneceu. Cinco minutos, dez minutos, talvez quinze minutos? Quem sabe?

Foi então que ganhou coragem e ergueu a cabeça, olhando novamente na direção da sua filha, na direção da urna. Ao início não queria acreditar no que os seus olhos viam. Será que estavam a pregar-lhe uma partida? Será que estava a ter alguma alucinação? Será que aquilo tudo era real? À sua frente não havia agora ninguém, apenas a urna castanho escura com uma coroa de rosas brancas e a fotografia a preto e branco.

Não! Não! Não, era apenas a urna que ali estava. Ao seu lado, e outrora oculta pelas pessoas que assistiam ao funeral, estava agora visível uma outra urna, também ela com uma coroa de rosas brancas em cima e ao centro uma moldura com uma fotografia a preto e branco. Na fotografia estava um homem que teria cerca de cinquenta anos. Na moldura estava a sua fotografia. Era ELE quem ali estava. Era ELE quem estava naquela urna.

As suas pernas não resistiram mais e caiu de joelhos. De um momento para o outro tudo ficou negro. Tudo ficou na mais completa e solitária escuridão.

Foi então que de repente uma luz intensa surgiu, e incindindo diretamente no seu rosto, nas suas pálpebras fechadas, assumiu uma tonalidade de um vermelho intenso. Sentiu que tinha os olhos cerrados e fez um esforço hercúleo para os abrir. À medida que as suas pálpebras se entreabriam lentamente, a sua retina era encandeada pela luz forte que incidia diretamente no seu rosto. Tornou a cerrar as pálpebras, para novamente as tentar reabrir. Foram precisos alguns instantes para conseguir abrir os olhos e perceber o que o rodeava. Os seus ouvidos começaram a captar os sons que o rodeavam, deixando antever a confusão que o cercava. Mas, …, havia algo que não batia certo. Abriu e fechou os olhos por diversas vezes e quando conseguiu focar o seu olhar reparou que tudo estava ao contrário. Tudo estava de pernas para o ar.

Naquele instante outro sentido despertou e sentiu um cheiro forte, um cheiro intenso, um cheiro desagradável. As suas narinas dilataram-se e deixaram entrar o cheiro a combustível, provocando-lhe um ardor nos pulmões. Sentia-se desorientado, sentia o seu corpo preso, rígido, tenso. Ainda assim, rodou ligeiramente a cabeça e percebeu que havia alguém ao seu lado. Continuou a rodar a cabeça e foi então que viu o rosto da sua filha, um rosto que não apresentava a sua cor normal, mas sim um vermelho vivo. Um rosto coberto de sangue.

De um momento para o outro, tudo ficou negro outra vez, e ele regressou à mais completa escuridão. Não sabe quanto tempo assim permaneceu. Minutos, horas, dias, meses, anos, para a eternidade? Não sabe. Perdeu a total noção de tempo, perdeu a completa noção da realidade.

No meio daquela escuridão vários pensamentos surgiram na sua mente. Estaria vivo ou morto? Poderia ter morrido e continuar a pensar? Não sabia. Não tinha respostas. Foi então que uma memória surgiu de repente. Lembrava-se de ter estado numa festa com a sua filha e de ter bebido nessa noite. Uma bebida. Não, …, talvez tivessem sido duas. Não, …, talvez três ou quatro, talvez mais. Lembrava-se de ter saído da festa e de a sua filha insistir para que ele não conduzisse. Lembrava-se de ele dizer que estava em condições e de se sentar ao volante. Lembrava-se de que era de noite e, de repente, talvez por ter fechado os olhos tudo ficou escuro, …, muito escuro, …, até ouvir um grito ensurdecedor, abrir os olhos, ver um clarão, ouvir um estrondo e então tudo começou a andar à roda. Depois apenas se lembrava do rosto da filha coberto de sangue.

Algo que não batia certo. Vira o rosto da filha coberto de sangue, a urna dela ao lado da sua própria urna. Estariam os dois mortos? E se sim, como poderia ele continuar a pensar? Porque é que a sua mente não estava condenada ao vazio eterno, remetida ao vácuo da escuridão?

Foi então que a escuridão começou a ser atenuada por uma ligeira luz que despontava para lá das suas pálpebras. Gradualmente, a luz foi ganhando intensidade, tornando-se avermelhada devido às suas pálpebras cerradas. Fez um esforço para abrir os olhos, mas sentia um peso enorme, quase como uma tonelada. Não desistiu e conseguiu semicerrar os olhos. Depois de algum esforço conseguiu perceber uma enorme superfície branca, na qual despontavam alguns focos de luz que o encandeavam. Abriu os olhos lentamente e percebeu que estava a olhar para um teto branco no qual havia vários focos de luz.

No seu ângulo de visão surgiu então um rosto de um homem de meia idade e de cabelo grisalho. 

  • Boa tarde! Está a ouvir-me?
  • S-s, …, s-sim. – conseguiu dizer. Depois fazendo um esforço enorme, perguntou. – O-onde é q-que eu e-estou?
  • Está no hospital! Teve um acidente de viação! Por favor tente não falar!
  • E …, e …, e a minha filha? Ela está bem?

O rosto do médico que estava à sua frente assumiu uma expressão grave.

  • E-e-ela …, …, e-e-ela morreu? – pronunciou a muito custo à medida que as lágrimas corriam rosto abaixo.
  • Ela está …, em estado grave. – respondeu o médico. - Mas vai sobreviver.

Ela estava viva. Ela iria sobreviver e tudo não havia passado de pesadelos que ele tivera enquanto estivera em coma. Pesadelos tão vívidos que pareciam ser reais. Mas, agora sabia que tinham sido apenas isso e que a vida lhe dava uma segunda oportunidade.

30
Mai21

Segunda Oportunidade (Parte I)

Fernando Varela

Era de manhã cedo quando o despertador tocou. Ainda não eram sete horas e o quarto, que se fazia iluminar pelos primeiros raios de sol daquela manhã, foi inundado pelo barulho irritante do alarme do despertador. Não precisara dele para acordar pois passara toda a noite acordado, revivendo vezes sem conta aquele pesadelo que se repetia continuamente sem parar.

A cada repetição a sua angústia aumentava, deixando-o num estado de profunda depressão. Levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho. Despiu-se e entrou no poliban para tomar um duche, abrindo de imediato a torneira da água fria. Lá do alto, uma torrente de água gelada caiu sobre o seu corpo, torturando-o, e ele aceitou esse castigo pois merecia-o. Merecia talvez muito mais do que isso.

Deixou que a água caísse sobre ele, permanecendo num estado quase catatónico. Os seus olhos contemplavam o acinzentado do azulejo numa expressão vazia, quase sem vida. Cerca de dez minutos depois levou a mão direita em direção à torneira, não para abrir a água quente, mas sim para a fechar. Saiu do poliban e pegando na toalha que repousava no toalheiro cromado, secou o seu corpo rígido e tenso.

Dirigiu-se para o quarto e abriu o roupeiro. Não precisou de mais de dois minutos para que tivesse vestido umas calças pretas de tecido, uma camisa preta e calçado uns sapatos pretos. Do roupeiro retirou ainda um blazer, também ele preto, e depois de o vestir olhou para o espelho que havia numa das portas. Por momentos não reconheceu o homem que se encontrava diante dele. À sua frente tinha um homem magro, de cerca de cinquenta anos e com um metro e noventa de altura. A sua cara estava abatida. Os seus olhos não tinham expressão e por debaixo destes duas enormes olheiras desfiguravam o seu rosto.

Foi até à sala e pegando num molho de chaves saiu de casa fechando atrás de si a porta do apartamento. Desceu devagar os lanços de escada que o levariam do quarto andar até à rua, onde caminhou com passo decidido, embora não muito rápido. À sua volta o normal bulício de uma cidade numa manhã de quarta-feira. Carros que circulavam apressados de um lado para o outro, motas que deambulavam no meio do trânsito e que faziam ouvir o barulho dos seus escapes acima do barulho do tráfego. Pessoas calcorreavam o passeio num passo apressado de quem vai para o trabalho ou para a escola. Não era o seu caso. Ainda assim tinha para onde ir, mas não tinha pressa de lá chegar. Podia mesmo dizer que não queria lá ir, mas tinha de o fazer. Precisava de o fazer.

Continuou a caminhar serenamente, sem pensar para onde, como se de um autómato se tratasse em que tivesse sido programado aquele percurso. Caminhava completamente indiferente a tudo quanto o rodeava. Quarenta minutos bastaram para que se encontrasse diante de um portão largo e alto, com grades de ferro pretas. Para lá deste, um mundo completamente diferente, um mundo de silêncio.

Parado defronte ao portão, fez um compasso de espera, findo o qual ganhou coragem para avançar. Avançou, e passo a passo, caminhou na sua direção transpondo-o até se encontrar num largo de empedrado branco, de pedra calcária, que havia do outro lado. No meio, um círculo relvado onde uma estátua de mármore branco sobressaía. A toda a volta do largo irradiavam diversas alamedas de onde nasciam diversas ruas, que por sua vez davam origem a ruas mais estreitas, numa malha que havia sido tecida ao longo do tempo.

Atravessou o largo, em direção à alameda que havia em frente. De ambos os lados, altos ciprestes verdes se erguiam, como se de uma guarda de honra se tratassem, projetando a sua sombra ao longo do caminho. Construções brancas, de granito ou de mármore, todas elas encimadas por uma cruz, ou uma águia, tinham sido erigidas ao longo desta, e ali permaneciam, imóveis, numa homenagem silenciosa a quem um dia tinha entrado naquele mundo. Percorreu a alameda, em passo decidido e ao chegar ao fim deparou-se com uma ampla visão sobre a colina que se explanava aos seus pés. Ao longe na paisagem, cerca de quinhentos metros mais abaixo, um pouco descaído para a sua esquerda, um grupo de pessoas encontrava-se reunido, a maior parte delas de costas para ele.

Recomeçou a andar, percorrendo o cemitério na sua direção, tentando manter sempre o seu caminhar firme. A cada passo, sentia as suas pernas cada vez mais pesadas, como que protestando para que ele parasse e não continuasse a percorrer aquele caminho. Mas, tinha de ser forte, tinha que as contrariar. Contrariar as suas fraquezas, seguir em frente, percorrendo aquele caminho, um passo atrás do outro.

Quando faltava apenas uma dezena de metros para alcançar aquele o grupo de pessoas que se mantinha, imóvel e em silêncio, decidiu parar. Permaneceria ali. À sua frente duas a três dezenas de pessoas, a maioria delas vestidas de preto. O silêncio era ensurdecedor.

Por entre aqueles vultos era possível perceber um objeto retangular de cor castanho escura, feito em madeira. Não precisava de se aproximar para saber perfeitamente quem se encontrava dentro daquela urna e isso provocava-lhe um sofrimento atroz. Sentiu as suas pernas a tremer como se a qualquer momento fraquejassem e fossem incapazes de suportar o seu peso. Permaneceu imóvel, incapaz de dar mais algum passo, pois agora as suas pernas pesavam toneladas e não havia forma de as conseguir movimentar.

(Continua ...)

29
Dez20

Se o Destino existe (Parte IV)

Fernando Varela

Foi então que num desses dias em que ele havia colocado a lista por debaixo da porta que, pouco depois das seis da tarde ele se apercebeu de um ligeiríssimo ruído que vinha das escadas e encaminhando-se até à porta do apartamento, abriu-a. Em frente a ele estava uma jovem de cabelo castanho claro. Vestia umas calças de ganga, uma t-shirt preta e calçava uns ténis brancos. Naquele preciso instante estava a pousar um saco de compras em frente à porta de sua casa. Agora que podia ver melhor aquela jovem, que no outro dia apenas tinha visto de relance a descer as escadas, e apesar de parte do seu rosto estar coberto por uma máscara, conseguia agora confirmar a impressão que tivera anteriormente de que ela não teria mais de treze anos.

 - Olá! – disse ele.

- O-olá!!! – respondeu a rapariga, ligeiramente envergonhada.

- Tens sido tu quem me tem trazido as compras? – quis saber ele.

- S-sim!!!

- Então, és tu quem me tem estado a ajudar todo este tempo?

- S-sim, …, n-não, …, …,

- Sim!? Não!? – o rosto dele, também por detrás de uma máscara, denotava que ele não estava a perceber a resposta que a jovem rapariga tinha acabado de lhe dar.

- B-bem, …, na verdade sou eu quem lhe vem aqui trazer as compras, quem as coloca aqui no patamar das escadas, mas …,

- Mas, … !? – continuava ele a inquirir.

- Mas, …, na verdade quem o está a ajudar é …, é …, é o meu pai. É ele quem faz as suas compras.

- Então, é a ele a quem eu pago quando faço a transferência bancária?

- Sim. Eu apenas me limito ajudá-lo a distribuir as compras pelas várias pessoas deste bairro para quem ele faz compras.

- Compreendo! – disse ele, e depois de uma ligeira pausa continuou. – E sabes por que razão o teu pai faz isto.

- Acho que sim. Deve ser pela mesma razão que eu o estou a ajudar.

- A sério!?

- Sim. Acho que o faz …, por ter percebido que haveria muitas pessoas que arriscariam a sua vida ao saírem para fazer compras, pois a sua idade poderia representar um grave perigo caso ficassem contagiados. Assim, e como ele é mais novo, e …, eu também, podemos fazer as compras sem corrermos esse perigo e assim evitarmos que pessoas como …, o senhor …, pessoas mais idosas corram esse risco.

- O-obrigado!

Por detrás da máscara que usava na cara sentiu que o seu rosto ruborescer e o marejar dos seus olhos, emocionado com o que aquela jovem acabara de lhe dizer.

- Sabes uma coisa? Fazes-me lembrar o meu filho!

- A sério? Porque diz isso?

- Ele era assim como tu. Ele era uma pessoa muito humana, sempre muito preocupado com os outros, sempre preocupado em ajudar, especialmente as pessoas mais idosas, …, pessoas que eram como eu sou agora, …, um idoso.

- Mas, …, o seu filho morreu?

- Não, …, acho que não.

Naquele preciso instante sentiu que uma lágrima se soltava e descia pelo seu rosto abaixo até se enxugar na máscara que lhe cobria a boca e o nariz

- Acha!? …, mas …, não tem a certeza?

- Não vejo o meu filho, nem falo com ele, vai para quinze anos.

- Mas porque não se falam? – quis saber a rapariga.

- Sabes, …, por vezes acontece as pessoas zangarem-se, e …, há algumas zangas que são maiores e acabamos por ficar sem falar uns com os outros. Isso não quer dizer que deixemos de gostar da pessoa, apenas que deixámos de falar durante algum tempo.

- Mas porque não fizeram as pazes?

- Não sei. Acho que por orgulho. Ambos somos muito orgulhosos e isso impediu que um de nós pedisse desculpa. Depois o tempo foi passando. Sabes, …, o tempo não para e a dada altura eu perdi o seu contacto, e hoje não sei nada acerca dele, nem …, nem tão pouco como o contactar. Hoje, …, se eu quisesse falar com ele não saberia como o fazer.

- Não fique assim! – disse-lhe a rapariga ao reparar que chorava. – Vai ver que um dia o seu filho virá ter consigo e vão fazer as pazes e ficarão novamente amigos.

- Obrigado, …, mas …, não sei se será assim tão fácil.

- Porque diz isso? – quis saber ela.

- Sabes, quando a minha mulher morreu foi quando eu o vi pela última vez. No seu funeral. Ele estava lá com a mulher e com uma filha pequena. Não nos falámos. Uns anos mais tarde eu acabei por mudar de casa e agora muito dificilmente ele saberá onde vivo. Acho que um dia irei morrer sem nunca voltar a falar com ele. Sem nunca conhecer a minha neta.

- Não diga isso. Vai ver que um dia ainda o vai encontrar e …, vai conhecer a sua neta.

- Gostava muito, mas não sei se será possível.

- Vai ver que sim.

- Obrigado! – disse ele, e fazendo uma curta pausa continuou. – Gostei muito de falar contigo mas …, o teu pai deve estar à tua espera.

- É verdade. Adeus! – disse ela ao mesmo tempo que começava a descer a escada.

Ainda não tinha chegado ao fim daquele lanço quando se voltou para trás e lhe perguntou:

- Da próxima vez que eu vier posso tocar-lhe à campainha para falarmos mais um pouco?

- Claro que sim. – respondeu ele.

Ao mesmo tempo, e por debaixo da máscara, o seu rosto esboçava um sorriso e aproveitando enquanto ela estava ali parada, ele perguntou:

- Achas que o teu pai poderia vir aqui? Gostava de falar com ele. Gostava de lhe agradecer tudo o que tem feito por mim.

- Acho que sim! – respondeu ela. Ao mesmo tempo recomeçava a descer as escadas e sorrindo disse. – Adeus!

- Adeus! – retorquiu ele e voltando para dentro de casa fechou a porta atrás de si.

Ao regressar à sala sentia-se feliz, como se aquela pequena conversa tivesse acabado com toda a solidão que ele sentia. Como ele gostara de falar com aquela rapariga. Como ele gostara de ver que, afinal ainda havia jovens solidários que se preocupavam com os outros. Aqueles poucos minutos de conversa, e a expectativa de voltar a falar com ela haviam curado semanas de solidão, embora agora aquele seu sentimento de felicidade começasse lentamente a ser substituído por um sentimento mais forte. Um sentimento de saudade, um sentimento de angústia, ou talvez de remorso, pelos anos que haviam passado sem falar com o filho, sem conhecer a sua neta, e pior do que tudo, por saber que muito provavelmente um dia iria morrer sem voltar a falar com ele, sem chegar a conhecer a sua neta.

De tal forma estes sentimentos o apertavam num abraço de dor que não se apercebeu de imediato do tocar da campainha. Demorou alguns segundos até que se apercebesse do toque da campainha. Levantou-se e foi até à porta abrindo-a. À sua frente, e por detrás de um grande sorriso, estava aquela rapariga que lhe levava as compras e com quem ele estivera a falar alguns minutos antes. Ao seu lado, e de máscara no rosto, estava um homem, que só poderia ser o seu pai, a pessoa que o vinha ajudando ao longo das últimas semanas.

- Obrigado! Queria agradecer-lhe a sua ajuda ao longo, …, destas últimas …, …, semanas …, …,

A sua voz começou a ficar embargada. As palavras não queriam sair da sua boca e a cada segundo que passava o esforço que fazia para falar era cada vez maior, e tudo isto porque ele não queria acreditar no que os seus olhos estavam a ver naquele preciso instante. “Não! Não era possível!”

- FILHO !? …

- PAI !? …

Por momentos ficaram os dois a olhar um para o outro, depois de se terem reconhecido por detrás da máscara que ambos usavam a cobrir o rosto. À sua frente estava também a sua neta, a neta que ele nunca conhecera e que olhando alternadamente para o pai e …, para o avô, começara a chorar. As lágrimas corriam-lhe rosto abaixo. Não eram lágrimas de tristeza mas sim de alegria, de alegria de ter conhecido o seu avô, mas acima de tudo por este poder voltar a ver o seu filho e de os dois poderem voltar a falar um com o outro. De fazerem as pazes.

Ele estava incrédulo com o que se estava a passar.

Como era possível que de repente sem que nada o fizesse prever o seu filho estivesse novamente à sua frente? Como era possível que sem o saber, quando ele mudou de casa, e sem o saber, acabou por ir havia ido morar para o mesmo bairro onde morava o filho? Como era possível que ao longo de tantos anos nunca os dois se houvessem cruzado naquelas ruas? Naquele instante todo um turbilhão de perguntas circulava dentro da sua cabeça e não havia uma única explicação lógica para cada uma delas. A única explicação para tudo aquilo que estava a acontecer não era lógica, não era racional. A única explicação que naquele momento lhe ocorria era o destino. Só assim. Só se o destino existe é que tudo poderia ser explicado e, apenas o destino poderia fazer com que naquele preciso instante, ali mesmo, à sua frente, pudesse estar o seu filho, com quem há muitos anos não falava, e …, ao seu lado …, a sua neta.

20
Dez20

Se o Destino existe (Parte III)

Fernando Varela

Sozinho em casa o tempo demorava a passar e aqueles dois dias até que ele voltasse a passar a sua lista de compras por debaixo da porta demoraram uma eternidade. Parte do tempo passou-o a ver televisão, particularmente as notícias sobre a pandemia, buscando uma qualquer novidade que pudesse acender aquela pequena réstia de esperança em poder voltar novamente a sair. Por vezes, e para tentar se distrair de toda aquela situação procurava um canal que estivesse a dar algum filme, ou um documentário que lhe interessasse. Quando se fartava de ver televisão, ora pegava num livro para ler, ora pegava no seu caderno de apontamentos e começava a escrever. Mais tarde haveria de passar aquelas estórias para o seu computador.

Folheou o caderno e percorreu a dezena de pequenas estórias, de contos, que ele havia escrito. Talvez um dia, depois de toda aquela pandemia passar, quem sabe ele não tentaria publicar um pequeno livro de contos. Releu as últimas folhas que estavam escritas e depois de pensar durante alguns minutos recomeçou a escrever. Ao princípio a sua escrita saía aos solavancos, mas à medida que continuava a escrever sentia que esta se soltava e quase sem dar por isso era como se estivesse viciado, como se nada mais existisse. Era como se não houvesse mais pandemia e ele tivesse sido transportado para um mundo completamente diferente, para o mundo das suas estórias. 

Por fim, e passados que estavam dois dias de ansiedade, eis que chegava novamente o momento de fazer a sua lista de pedidos. Como era seu costume, logo pela manhã, sentado à mesa da cozinha, e enquanto tomava o pequeno-almoço, lá ia escrevinhando naquele quadrado de papel os bens de que ele precisava. Uma vez concluída a lista, levantou-se e encaminhando-se para a entrada do seu apartamento passou o papel por debaixo da porta, para que este ficasse no patamar das escadas. Agora restava-lhe apenas esperar para ver quem lhe viria deixar as compras. O dia passou lentamente, um dia igual a tantos outros a que ele estava obrigado a passar confinado dentro daquela prisão em que se tinha transformado a sua casa.

Com o aproximar do final da tarde começou a prestar atenção aos sons que surgiam vindos das escadas do prédio na tentativa de se aperceber quando aquele benemérito colocaria as suas compras em frente à sua porta de casa. Queria poder agradecer-lhe. Para o fazer, já colocara em cima do móvel que havia no hall de entrada, uma máscara que anteriormente ele havia pedido que lhe comprassem. Passou aquele final de tarde a ver televisão sem som, aproveitando para ver um filme legendado, na esperança de dar conta do instante em que depositassem as compras à sua porta.

Às seis da tarde levantou-se do sofá e dirigiu-se para a porta de entrada. Abriu-a e reparou que o patamar continuava vazio. Quem quer que fosse que lhe fazia as compras ainda não tinha passado por ali, pois não havia no patamar nenhum saco com os seus bens. Voltou-se, e fechando a porta regressou para dentro de casa, para o sofá e continuou a ver o filme a que estava a assistir. Faltavam quinze minutos para as sete da tarde quando, ao ouvir barulho vindo das escadas, se voltou a levantar para verificar se quem poderia ser a pessoa que lhe trazia as compras. Caminhando com a agilidade que o seu corpo permitia, dirigiu-se para a porta de entrada, abriu-a, e no chão, mesmo à sua frente, estava um saco de compras. Sentindo uma presença no patamar, levantou os olhos e reparou que uns metros mais à frente estava uma mulher:

- Boa tarde! – disse ele.

- Boa tarde! – respondeu a mulher que estava à sua frente.

A mulher que estava no patamar era alta e deveria ter cerca de um metro e setenta, tinha cabelo ondulado castanho claro que lhe dava pelos ombros, e uns olhos verdes que a máscara não conseguia esconder e não deveria ter mais de quarenta anos.

 - Como tem passado vizinho? – e depois de uma curta pausa prosseguiu. – Já há algum tempo que não o via!

- Cá estou, nesta maldita prisão! Há mais de três semanas que não saio de casa, que me limito a viver nesta maldita prisão domiciliária. A minha sorte é que há alguém que faz as compras por mim e assim não preciso de sair.

- Ainda bem. Ainda bem vizinho!

- Por acaso não viu quem me colocou aqui as compras? – quis saber ele.

- Não. – respondeu ela. – Mas não sabe quem lhe faz as compras?

- Não. Apenas sei que, no início disto tudo me colocou um papel por debaixo da porta oferecendo-se para me fazer as compras, sem pedir nada em troca. Há três semanas que, de dois em dois dias, de manhã recolhe a lista de bens que deixo ficar no patamar, e ao fim da tarde deixa ficar o saco com as compras. Depois só tenho que transferir para a sua conta o valor que pagou.

- Ainda há bondade neste mundo. Ainda há pessoas que se preocupam com o outro e não apenas com elas próprias. – disse a vizinha.

- Verdade! – respondeu ele. – É por isso mesmo que eu queria descobrir quem me está a ajudar para lhe poder agradecer.

- Lamento, mas não consigo ajudá-lo. Quando aqui cheguei o saco já aí estava e não me cruzei com ninguém nas escadas.

- Não faz mal. Ficará para uma outra altura.

- Já sabe que pode contar comigo se precisar de alguma coisa.

- Eu sei, vizinha. Não tivesse sido alguém a fazer-me as compras e talvez eu tivesse sido obrigado a pedir-lhe ajuda. – fez uma pausa e continuou. – Então, … boa tarde.

- Boa tarde! – respondeu ela ao mesmo tempo que abria a porta de sua casa.

Pegando no saco de compras voltou para dentro, fechando a porta atrás de si. Não se apercebera de ninguém nas escadas a deixar as compras, e agora não havia mais nada a fazer senão esperar pela próxima vez, senão esperar mais dois dias.

A sua rotina era sempre a mesma, dia após dia, e restava-lhe apenas aguardar que o tempo passasse. Dois dias mais tarde, pela manhã, voltaria a colocar a lista de compras no patamar e aguardaria pelo final da tarde para tentar descobrir quem o estava a ajudar. Ainda não eram seis e meia da tarde, quando na ausência de qualquer barulho nas escadas ele decidiu abrir a porta de casa para ver se as compras já lá estariam. Abriu a porta e de imediato reparou que há sua frente, pousado no chão de mármore estava um saco de compras. Foi então que, …, pelo canto do olho se apercebeu de algum movimento e, virando a cara para a direita, viu uma rapariga que descia as escadas e que dava a volta para o lanço seguinte. Era uma rapariga jovem, que não deveria ter mais de doze ou treze anos, de cabelo castanho claro e que vestia uma t-shirt, umas calças de ganga e usava ténis.

Teria sido ela quem lhe colocara as compras à sua porta? Seria por causa dos ténis que ele não ouvia barulho na escada e por isso não sabia quando é que alguém colocava o saco no patamar? Quisera perguntar-lhe mas já não fora a tempo. Não, não podia ser. Não fazia sentido que alguém tão novo se oferecesse para lhe fazer as compras. E como é que alguém daquela idade poderia ter uma conta bancária? A mesma conta bancária para onde ele transferia o dinheiro sempre que alguém lá lhe deixava as compras.

Nos dias que se seguiram, por diversas vezes ele colocara a lista no patamar, e por diversas vezes as compras lhe haviam sido entregues, sempre da mesma maneira, e sem que ele se conseguisse aperceber de quem o fizera. Há mais de um mês que a sua rotina diária se mantinha sempre a mesma, mas nos dias em que ele escrevia a lista de compras sentia-se menos sozinho. Era como se ao escrever aquela lista ele estivesse a comunicar, como se ele estivesse a falar com alguém, e que mesmo sendo alguém que ele desconhecia quem fosse, escrever aquele bilhete fazia com que ele se sentisse menos solitário.

08
Dez20

Se o Destino existe (Parte II)

Fernando Varela

Olhou para o relógio que estava em cima da sua mesa-de-cabeceira e o mostrador digital luminoso indicava que eram quase nove horas da manhã. Espreguiçou-se e lentamente levantou-se da cama. Foi até à cozinha e preparou uma caneca de café. Sentou-se à mesa da cozinha, e enquanto bebia o café e comia um pão com manteiga, escrevia num papel os bens que necessitava, fossem eles alimentos, medicamentos, detergentes, produtos de higiene pessoal, máscaras, ou até mesmo o jornal do dia.

Quando acabou de escrever a lista reparou que tinha preenchido todo o pequeno retângulo de papel que retirara do bloco. No entanto, havia ainda um pequeno espaço no final da página que ele aproveitou para escrever: “OBRIGADO!”. Levantou-se, e levando o papel consigo foi até à porta da entrada de sua casa e, baixando-se passou o papel por baixo desta para o lado de fora, para o patamar das escadas. De seguida encaminhou-se para a casa de banho, onde depois de observar no espelho uma barba de duas semanas, tomou um duche e vestiu-se. Por volta das sete da tarde, voltaria até junto da porta de entrada, rodaria a chave na fechadura, destrancando-a, e abrindo a porta recolheria o saco que estaria no patamar, à sua espera, com os bens que ele havia listado naquela mesma manhã.

Aquela rotina repetia-se duas vezes por semana. Desde que esta situação começara que, todas as semanas, duas vezes por semana, ele listava num pequeno papel os bens que precisava, e passando-o por debaixo da porta de entrada do seu apartamento, colocava-o no patamar do seu andar. Este papel era depois recolhido por alguém que se encarregava de fazer as compras por si, e ao final do dia, no mesmo patamar, do lado de fora da porta, deixava ficar os bens que ele havia pedido.

Quem lhe fazia as compras ele desconhecia. Apenas sabia que um dia depois do estado de emergência ter começado, alguém fizera passar por debaixo da sua porta, um papel com uma mensagem que lhe mudaria a vida daquele momento em diante. Morava sozinho, e foi no preciso instante em que, devido à necessidade de comprar alimentos, ele se preparava para sair de casa, violando o confinamento obrigatório que lhe havia sido imposto, que reparou num papel azul que estava no chão, aos seus pés.

Baixou-se, pegou no papel e leu-o:

“Vizinho,

sou morador aqui no bairro e se por algum motivo estiver impossibilitado de sair de casa, para comprar bens essenciais, ou se for uma pessoa idosa, e se sair à rua acarretar um risco acrescido para si, estou à sua disposição para fazer as compras de que necessita e deixar aqui à sua porta os bens essenciais que lhe façam falta, garantido assim que tem acesso a estes, de uma forma segura, sem necessidade de sair de casa, não colocando a sua vida em risco, desnecessariamente.

Para tal, bastará apenas que, de manhã, coloque no patamar, no exterior da sua porta, uma listagem dos bens que precisa para que eu possa fazer as compras por si. No final do dia, deixarei ficar à sua porta o saco com as compras, bastando depois transferir para esta conta bancária o valor da fatura que estará junto dos seus bens.

Estou aqui para o ajudar, pelo que lhe peço para não correr riscos desnecessários.

Disponha.”

E assim, já havia três semanas que não saía de casa. Havia três semanas que estava completamente enclausurado em casa.

Não sabia quem lhe fazia as compras que ele necessitava. Apenas sabia que havia alguém que morava naquele bairro que se voluntariara, num ato de solidariedade, e lhe comprava tudo aquilo que ele escrevia no papel que deixava no patamar. Alguém que o fazia sem receber nada em troca, apenas e só para que ele, já com mais de setenta anos, não tivesse que sair à rua e colocasse a sua própria vida em risco.

Mas aquele gesto era mais do que isso. Aquele gesto era mais do que apenas alguém que se voluntariara para lhe fazer as compras. Aquele gesto era um ato de humanidade, um ato de amor ao próximo, um ato de altruísmo numa sociedade que no ritmo louco do dia-a-dia se tornara egoísta e egocêntrica, onde apenas o bem-estar próprio se tornara importante e nada mais interessava. Aquele ato era uma réstia de esperança que, uma vez passada aquela pandemia, e depois de tudo voltar ao normal, talvez a sociedade aprendesse a lição que lhe havia sido imposta pela natureza e se tornasse mais justa e solidária, onde mais importante que o bem-estar próprio fosse o bem-estar da comunidade, e onde o altruísmo e a solidariedade imperassem sobre o egoísmo e o egocentrismo que predominavam.

Os seus dias eram assim passados em casa, sem que pudesse sair à rua, sem que pudesse passear por aquela cidade, sem que se pudesse sentir livre. Com as devidas comparações era como se ele vivesse numa “prisão domiciliária”, como se ele estivesse preso, só não tendo uma pulseira. Em boa verdade a sua casa havia-se tornado a sua prisão e aquele maldito vírus era o seu carcereiro impiedoso, que o obrigava a cumprir uma pena duríssima para um crime que ele não havia cometido. Qual fora o seu crime? O que é que ele havia feito para que tivesse que suportar tamanho castigo?

A sua vida não havia sido fácil, e agora que vivia sozinho, ainda menos o era. Filho único, perdera o seu pai aos dezassete anos e mais tarde a sua mãe quando já tinha sessenta anos. Aos trinta, havia casado e desse casamento viria a ter um filho com quem já não falava ia para quinze anos depois de uma desavença entre os dois. Agora vivia sozinho desde que a sua mulher falecera há onze anos atrás. Desde esse dia que também parte dele tinha morrido e daí em diante havia-se fechado e afastado dos poucos amigos que ainda tinha. Sem amigos, sem mulher ou família próxima, e sem falar com o filho ia para quinze anos, restava-lhe apenas lutar como sempre fora obrigado a fazer desde os seus dezassete anos. Muitas vezes pensava, como a vida tem sido cruel para ele.

Mas aquele papel por debaixo da porta tudo havia mudado, e agora havia alguém, que ele desconhecia quem fosse, que se prontificara a ajudá-lo sem pedir nada em troca, o que lhe facilitava a vida já de si penosa e solitária e a que se tinha juntado aquela prisão forçada. Não sabia como explicar, mas no meio de toda aquela solidão, mais do que apenas alguém que lhe fazia as compras, era como se fosse a única forma de comunicar que tinha para com o exterior. É certo que aquilo que ele escrevia no papel não passavam de simples listas de bens e o que recebia em troca era apenas um saco com as suas compras e a fatura correspondente, mas sentia que era mais do que isso.

Agora ali fechado em casa, preso, sem poder sair, praticamente vivia para aqueles momentos de uma tão simples e básica comunicação, que mesmo sem outras palavras traziam em si toda a sua gratidão, o amor e altruísmo de quem se oferecera para o ajudar. Por vezes, sentava-se no sofá da sala, fechava os olhos e tentava imaginar o rosto de quem o estaria a ajudar. Seria homem? Seria mulher? Que idade teria? Vinte anos? Trinta anos? Quarenta anos? E como seria a sua cara? Seria alto ou baixo? Seria gordo ou magro? O seu cabelo seria escuro, talvez preto ou castanho, ou por outro lado seria claro, talvez loiro? Nada disso importava. Apenas importava que havia alguém que se predispusera a ajudá-lo, e muito provavelmente não só a ele mas também a muitas outras pessoas que se encontrassem na mesma situação, que estivessem impossibilitadas de sair de casa.  

Os dias passavam e a sua rotina era sempre a mesma, fechado em casa, enclausurado. Quando não estava a dormir à noite, ou a preparar as suas refeições, ora passava os seus dias a ver televisão, ora a ler um livro ou talvez o jornal do dia, ora fazia palavras cruzadas, ora se sentava ao computador e escrevia. Gostava de escrever. Desde sempre que gostara de o fazer, fossem estórias de ficção imaginadas, fossem meros relatos, descrições, do que fora o seu dia, do que sentia, ou apenas uma simples lista de bens, que mais tarde faria passar por debaixo da porta.

A tarde já ia adiantada quando foi até à janela espreitar o que havia para além daquele seu calabouço de betão. Afastou a cortina e diante dele surgiu uma visão aterradora. À sua frente, do outro lado da vidraça, havia uma rua deserta, sem vivalma. Parecia que o tempo tinha parado. Parecia que alguém tirara uma fotografia e colocara diante da janela de sua casa. Deixou-se ficar ali cerca de dois minutos e durante todo esse tempo aquela visão apocalíptica não se alterou. Não viu ninguém cruzar a rua, fosse a pé, ou fosse de carro.

Deixou-se ficar à janela, perdido nos seus pensamentos e com os seus olhos a vaguearem no horizonte. Como era possível que em tão pouco tempo, no espaço de alguns meses a vida tivesse mudado tanto. Não só a sua vida, mas a vida da sua rua, da sua cidade, do seu país. A vida de um planeta inteiro. Como era possível que uma coisa tão pequena, tão minúscula que era invisível a olho nu, pudesse ter um efeito tão devastador.

Abriu a janela e sentiu um arrepio, não porque estivesse frio, mas pela ausência de barulho, pelo silêncio sepulcral que cobria a cidade. Estava habituado a viver sozinho mas não habituado àquilo, toda aquela solidão, toda aquela falta de movimento, toda aquela falta de vida. Sentia falta do barulho da cidade, das buzinas dos automóveis, do som das crianças a brincar na rua. Sentia falta daquele burburinho do bulício da cidade. Olhou para o relógio e reparou que passavam vinte minutos das sete da tarde. Fechou a janela e voltou para dentro de casa encaminhando-se na direção da porta de entrada do apartamento. Ao chegar ao hall, pegou nas chaves de casa, que estavam no móvel da entrada, e destrancou a porta, abrindo-a lentamente.

No patamar, e como de costume, mesmo à sua frente, no chão, um saco de compras esperava por ele. Esperava que ele o recolhesse. Pegou no saco e entrando em casa fechou a porta atrás de si. Foi até à cozinha e começou a tirar para cima da mesa os bens que estavam no interior do saco. No fundo deste ficaram dois papéis. Reparou que um era a fatura da compra que tinham efetuado, mas o outro era diferente, era um papel escrito à mão com uma esferográfica azul. Pegou no papel, e ajeitando os óculos que usava leu-o: “Uma vez mais aqui lhe deixo ficar as suas compras. Espero que esteja tudo conforme pediu. Estou aqui para o auxiliar, pelo que lhe peço que não hesite em pedir ajuda sempre que precisar. Cumprimentos.”

Uma vez mais, alguém que ele desconhecia o ajudava nas suas compras sem lhe pedir nada em troca, apenas e só pela vontade de ajudar o próximo. Haviam passado três semanas e ele continuava sem saber quem o estava a ajudar. Foi então que ele decidiu tentar descobrir quem seria aquela pessoa misteriosa que dispensava o seu tempo para evitar que ele arriscasse a sua vida.

(continua)

02
Dez20

Se o Destino existe (Parte I)

Fernando Varela

Era de manhã cedo, quando deu por si a despertar. Lá fora o dia raiava e, lentamente, sem que nada o pudesse impedir, a claridade começava a invadir o seu quarto. Sempre gostara de dormir com a persiana aberta deixando que a luz do dia o acordasse, e naquela noite não havia sido uma exceção. Pela janela podia ver um límpido céu azulado sem quaisquer vestígios de quaisquer farrapos brancos nele dependurados.

Outrora, àquela mesma hora estaria ele a levantar-se, iria até à casa de banho, onde numa série de movimentos automáticos, e já há muito memorizados, faria a barba para que de seguida tomasse um duche rápido. Dez minutos mais tarde, depois de se vestir, na cozinha beberia uma chávena de café forte, ao mesmo tempo que comeria duas fatias de pão acabadas de torrar, barradas com manteiga e cobertas com marmelada.

(continua)

Outrora, não precisaria mais do que trinta minutos para que estivesse pronto e saísse de casa rumo ao seu emprego. Assim o fizera dia após dia, mês após mês, ano após ano, apenas regressando a casa ao final do dia.

Outrora havia sido assim, mas o tempo não o perdoara, e lentamente, quase sem que ele desse por isso, havia-se encarregado de levar a sua jovialidade. O tempo havia passado, sem nunca parar. O tempo nunca para. Agora com setenta e oito anos, reformado, já não precisava de se levantar de manhã cedo para ir trabalhar. Todas as manhãs ao acordar, aproveitava para ficar deitado na cama durante mais algum tempo. Ficava deitado olhando pela janela do quarto, quer lá fora estivesse um céu azul, quer estivesse um céu repleto de nuvens cinzentas e a chuva caísse abundantemente, batendo com estrondo nas vidraças da sua casa.

Agora que não tinha mais aquela jovialidade, deixava-se ficar deitado, como se o seu corpo precisasse de ganhar coragem para se levantar, e ele, não se sentindo com força suficiente para o contrariar, deixava que o seu corpo levasse a sua avante, permanecendo deitado. Era pois normal acordar com o raiar do dia, para apenas se levantar quando na rua, movimentada por sinal, já se sentia o passar ininterrupto dos carros, as buzinadelas quase incessantes e a agitação de uma cidade em permanente movimento.

Agora tinha por hábito levantar-se por volta das nove horas, e os outrora trinta minutos que demorava a arranjar-se para sair de casa, haviam-se transformado em uma hora, pelo que, pelas dez horas da manhã costumava sair de casa para dar um passeio pela cidade. Caminhava devagar, não porque as suas pernas a isso o obrigassem, mas apenas porque gostava de viver aquela cidade que era a sua, de sentir o seu pulsar, de se deixar inebriar por todos aqueles cheiros e sons, por todas aquelas cores, pela sua luz e pelo seu movimento. Atravessava a cidade até à margem do rio, onde tinha por costume sentar-se num banco de rua observando os barcos, que deixando um rasgo de espuma branca à sua ré, o atravessavam de um lado ao outro. Por vezes via passar os cruzeiros, verdadeiros gigantes dos mares, que quase diariamente subiam a foz do rio e atracavam na margem, um pouco mais acima, para largarem os seus turistas. Em dias de sorte, podia passar a manhã inteira a ver barcos à vela, ou mesmo veleiros de maior dimensão, que engalanados e de velas ao vento, passeavam no rio, em regatas para cima e para baixo. Outras vezes caminhava até um dos jardins e por lá ficava grande parte da manhã, sentado num banco de jardim, fosse observando as crianças que por ali brincavam, ou as pessoas que por ali passavam, ou fosse de frente para algum lago que por ali existisse, observava os bandos de patos que, ora nadavam, ora passeavam na margem do lago. 

Hoje porém não seria assim. Aliás, nas últimas três semanas nem por uma única vez houvera um desses dias. Três semanas, três longas semanas. Esse era o tempo que ele estava confinado em casa, sozinho e sem poder sair. Havia três semanas que, devido a uma pandemia provocada por um vírus que repentinamente chegara do oriente, tinha sido declarado o estado de emergência e desde então que ele não podia sair de casa. Ainda lhe parecia um sonho, ou melhor dizendo, um pesadelo, mas o que era certo é que ele estava preso dentro de casa, sem poder sair.

Se há dois meses atrás lhe dissessem que ele iria ficar preso em casa, refém de um maldito vírus, ele diria que estavam a gozar com ele, mas o facto é que agora nada mais lhe restava do que estar confinado àqueles escassos metros quadrados que tinha o seu apartamento, sem poder vir à rua, sem passear pela cidade, sem poder ir até junto do rio, sem poder ir ao jardim, sem poder sentir o sol percorrer a sua cara ou o seu corpo, e caminhar sentindo a brisa que o rodeava e o envolvia. Agora, com a chegada daquele vírus invisível tudo isso havia mudado.

Ninguém sabia como aquela doença começara. Ninguém sabia como aquele maldito vírus havia surgido. Apenas se sabia que a pandemia tinha surgido no oriente e que rapidamente se espalhara pelo planeta inteiro provocando o completo caos em todos os países por onde passava. Irrompera de repente, não se sabe surgido de onde, e atacava as vias respiratórias, em particular os pulmões, onde uma vez instalado provocava uma pneumonia, chegando a levar à morte nos casos mais graves. Ainda que a sua taxa de letalidade não fosse muito elevada, era na população mais idosa e debilitada que o vírus se tornava mais agressivo e mortífero e isso fora suficiente para que o estado de emergência tivesse sido decretado.

Apesar de pouco afetar a população mais jovem, o efeito deste vírus era devastador na população mais idosa, e uma vez que não havia uma vacina para o prevenir, nem tão pouco algum medicamento que se mostrasse eficaz no seu tratamento, pouco mais restando aos médicos do que ventilar os doentes, evitar a propagação do vírus era assim a forma mais eficaz de prevenir os seus efeitos nefastos.

Lembrava-se como se fosse hoje. Era uma sexta-feira à noite e estava na sala a assistir às “Notícias às Oito”, quando de repente, por detrás do jornalista que naquele instante ia dando o relato sobre a situação da pandemia, surgiram as palavras “ÚLTIMA HORA!”. Quase em simultâneo o apresentador do noticiário interrompeu o que estava a dizer para anunciar que fora decretado o “ESTADO DE EMERGÊNCIA”. Isso significava a paragem quase por completo de todas as atividades económicas, o fecho de todas as lojas, dos cinemas, dos teatros, das piscinas, dos parques, dos museus, das escolas, das universidades, dos cafés, dos restaurantes. Na prática, significava que tudo fechava apenas com exceção para os serviços essenciais como as lojas, supermercados e hipermercados onde a população se pudesse abastecer de alimentos, ou as farmácias onde pudessem adquirir os seus medicamentos e bens essenciais à sua proteção, como máscaras e desinfetantes à base de álcool.

Mas o “ESTADO DE EMERGÊNCIA” significava mais do que isso. Não só a população estava obrigada a permanecer em casa, apenas se deslocando para adquirir bens essenciais, como as pessoas com mais de setenta anos estavam especialmente obrigadas ao confinamento no interior das suas residências, pois era esta a faixa etária que era mais ameaçada pelo vírus, sendo aconselhada a pedir auxílio, sempre que possível, para que alguém lhe levasse os bens essenciais, evitando assim ter que sair à rua. 

Ficou incrédulo com o que estava a ver na televisão e não queria acreditar no que os seus olhos e ouvidos tinham acabado de ver e ouvir. A partir daquele instante, e por tempo indeterminado, estava impossibilitado de sair de casa. A partir daquele instante estava refém daquele maldito vírus. A partir daquele instante estava prisioneiro na sua própria casa.

(continua)

15
Jul20

Lago da Memória (Parte II)

Fernando Varela

Ali se deixou estar o resto da manhã, sentado ao seu lado, e ali voltaria à tarde para estar de novo junto dEla. Passava os dias a contar-lhe as memórias do que haviam vivido, e enquanto ele as revivia, para Ela era como se estivesse a viver uma aventura, como se as vivesse pela primeira vez, pois o seu cérebro não guardava qualquer registo delas, por mais ligeiro que fosse. Mas, ainda assim, Ela gostava da sua companhia. Já muitas vezes lho dissera, e sempre que ele se ia embora, Ela perguntava "Amanhã voltas?". "Sim, amor.", dizia ele, ao mesmo tempo que lhe dava um beijo na testa, para depois lhe dar outro naqueles lábios, que outrora haviam sido carnudos, mas que ainda guardavam o doce sabor daquele amor que os dois viveram, que os dois ainda viviam, mas que agora ele se encarregava de viver por ambos.

Sentia-se perdido sempre que saía de perto dEla. Não sabia o que fazer, pois vivera grande parte da sua vida ao seu lado e agora encontrava-se sozinho. A sua vida já não era mais a mesma coisa. Deixara de fazer sentido, o mesmo sentido que antes fazia ao lado dEla. Mantinha algumas das suas rotinas básicas, como ir ao supermercado comprar comida, mas tal não passava de uma questão de sobrevivência, que lhe permitiria passar mais um dia ao seu lado. Por vezes, e quando era chegada a época, gostava de comprar morangos, sempre que, pelo seu aroma, percebia que estavam maduros e que o seu sabor seria adocicado, pois sabia que Ela gostava. Nessas alturas, lavava muito bem os morangos, arranjava-os, retirando o pedúnculo e as folhas verdes, e gentilmente os acondicionava, num recipiente de vidro, que levaria consigo, aquando da sua próxima visita, para lhe dar à boca, um por um.

Longe dEla, vivia na mais completa solidão, ansiando fervorosamente pelo momento em que voltasse a estar ao seu lado. Os dias sucediam-se, assim como os domingos, em que ele sempre passava pela florista antes de ir até à casa de repouso. “Bom dia!”, dissera-lhe a florista quando, num domingo como tantos outros, o viu parado a observar as rosas vermelhas que estavam num expositor à entrada. “Bom dia.”, respondeu ele, e continuando “Queria a rosa vermelha mais bonita, mais perfeita que tiver.”. A florista não precisava de o ouvir para saber o que ele procurava. De imediato havia começado a observar as rosas em busca daquela, da mais perfeita. Por diversas vezes pegara numa rosa, içara-a e, rodando-a na sua mão, observara-a cuidadosamente. Por diversas vezes a voltou a pousar, junto das restantes rosas, para de imediato pegar noutra, e a observar mais de perto. Repetiu este processo até que “Tome! Leve esta. É a mais perfeita de todas”. Ele retirou uma nota da carteira para pagar, ao mesmo tempo que lhe agradecia “Obrigado.”.  Ao receber a nota, a florista voltou a comentar com ele “Parece que hoje é novamente um dia especial. As rosas pressentem-no, e todas elas estão lindas. Todas elas estão perfeitas. É difícil escolher a mais perfeita de todas.”. Ele não podia concordar mais. “Tem razão, hoje é um dia especial. Hoje, fazemos trinta anos de casados.”. Pegou na rosa, e como sempre fazia aos domingos foi até à beira do lago onde, por alguns momentos, se sentou naquele banco de madeira, antes de ir ter com Ela.

Não sabe precisar quanto tempo ali esteve. Um quarto de hora, meia-hora talvez, ou mesmo uma hora. Não sabe. Quando se sentiu preparado, levantou-se e caminhou em direção à casa de repouso, em direção ao seu jardim e àquele banco que havia à beira do lago. Caminhou em direção a Ela. Como habitualmente, Ela estava sentada no mesmo banco de jardim, voltada para a água. Ao se aproximar dEla, reparou que tinha o mesmo ar sereno de sempre, como se aguardasse pacientemente pela sua chegada, ainda que, como acontecia todas as vezes, não se lembrasse dele, não o reconhecesse.         

Quando chegou junto do banco de jardim, e Ela desviou o olhar na sua direção, ele disse "Olá!". "Olá!", respondeu-lhe Ela. "Toma!", continuou ele, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para lhe oferecer a rosa vermelha que trazia consigo. "É para mim?", quis saber Ela. "Sim. Hoje, fazemos trinta anos de casados.", respondeu ele enquanto se sentava ao seu lado para, junto dela, reviver de novo as memórias de uma vida.

Os dias passavam, as semanas também, e ele mantinha a mesma rotina de sempre. Todos os dias A visitava na casa de repouso. Todos os dias passava horas ao seu lado, conversando com Ela, fazendo-a reviver aquele amor, guardando os momentos especiais para os domingos, dias esses em que comprava na florista a mais perfeita rosa vermelha. 

Assim passou o outono e o inverno logo a seguir. A sua rotina diária mantinha-se inalterada, fizesse chuva ou fizesse sol. Nos dias de chuva, a pequena alteração que porventura poderia existir seria o facto de Ela não estar sentada no banco de jardim, junto ao lago, mas sim numa cadeira de baloiço que havia no seu quarto, mesmo ao lado da janela.

A primavera chegara, e aquele era apenas mais um domingo de maio. Como era seu hábito aos domingos, levantara-se de manhã cedo, arranjara-se, tomara o pequeno-almoço e ainda não eram nove horas da manhã quando saiu de casa. Antes de seguir em direção ao lago passou pela florista para comprar uma rosa vermelha. Não demorou muito a fazer o caminho até à florista, mas, uma vez lá, reparou em algo de diferente. Não havia rosas vermelhas. "Talvez as tenha guardadas sem ser à vista.", pensou ele, e foi nesse preciso instante que ouviu a florista a falar consigo. "Bom dia!". "Bom dia!", respondeu ele. "Hoje ainda não colocou as rosas vermelhas em exposição!", afirmou, convencido de que a florista as guardava algures no interior da loja. "Lamento, não sei o que aconteceu. Hoje não havia rosas vermelhas." respondeu-lhe a florista desapontada. Depois, continuando disse, "Não quer antes levar uma rosa branca? Eu sei que não é a mesma coisa, mas hoje as brancas também estão muito bonitas.". Por instantes pensou na sugestão e hesitou. "Hum!!!, ..., ..., não sei, ..., ..., está bem! Lá terá que servir!" A florista começou então a escolher a rosa Branca mais perfeita que ali estava. Depois de umas quantas hesitações estendeu-lhe aquela que lhe parecia ser a mais perfeita de todas. "Desculpe, posso fazer-lhe uma pergunta?", quis saber a florista. "Claro que sim.", respondeu ele. "Hoje não havia rosas vermelhas. Não é um dia especial?", questionou ela. "Hoje, é o casamento da nossa neta. É um dia muito especial.", respondeu ele, e depois continuou, "Mas, se não há rosas vermelhas, a Branca vai ter de servir.".

Pagou a rosa, e despedindo-se da florista caminhou em direção ao lago onde, e como habitualmente fazia, se sentou sozinho no banco de madeira junto à margem. Quase uma hora depois levantou-se e caminhou até à casa de repouso. Ao passar o portão dirigiu-se para o banco de jardim que havia à beira do lago, pois sabia que Ela já lá estaria. Foi então que parou de repente. O banco estava vazio, Ela não estava lá. Naquele instante sentiu que lhe tocavam no braço e voltou-se. Era uma senhora baixa, um pouco forte, vestindo uma bata azul clara. Era uma funcionária da casa de repouso. "Lamento, mas,..., não sei como lhe dizer,…, mas,…,  a sua esposa faleceu esta noite." Ao ouvir aquelas palavras não conseguiu evitar que as lágrimas corressem rosto abaixo. "Os meus sentimentos.", continuou a funcionária, afastando-se sabendo que naquele momento não haveria palavras que curassem tamanha dor. Sentia a sua voz de tal forma embargada, que apenas conseguiu pronunciar um pouco audível "Obrigado.", antes de a funcionária se afastar.

Ao ficar sozinho, encaminhou-se até à margem do lago, e gentilmente pousou a rosa Branca na água, ficando a vê-la afastar-se. "As rosas, pressentem-no". Agora estava sozinho. Tinha perdido a sua mulher, a sua rosa de uma vida.

Talvez um dia se voltassem a encontrar.

Agora restava-lhe apenas a sua memória.

08
Jul20

Lago da Memória (Parte I)

Fernando Varela

Era um domingo como tantos outros. Levantara-se de manhã cedo, arranjara-se, tomara o pequeno-almoço e antes das nove horas estava a sair de casa. Ia para cinco anos que continuava a fazer aquela rotina, todos os domingos, ainda que agora o fizesse sozinho. Outrora fizera-o com ela. Saíam os dois de manhã cedo, de braço dado, passeando junto ao lago. Faziam-no calmamente, sem pressa, aproveitando para recordar os momentos especiais que viveram juntos. Em dias de bom tempo, chegavam mesmo a passar toda a manhã sentados num banco de madeira, que havia de frente para o lago, sem que dessem pelo passar do tempo. Mas há cinco anos, tudo mudara. Agora, mesmo com oitenta anos, ele continuava a fazê-lo, ainda que sozinho.

Saiu de casa e caminhou em direção ao lago. Era uma manhã de outono. No ar, aquele cheiro característico de neblina e de folhas molhadas. Na sua mão, levava uma rosa vermelha, linda, perfeita. " As rosas hoje estão lindas. Estão mais perfeitas do que nos outros dias. Hoje deve ser um dia especial. As rosas pressentem-no, sabia? ", dissera-lhe a florista. "É verdade.", respondera ele, "Hoje, fazemos vinte e cinco anos de casados.". Sempre que comprava uma rosa, coincidência, ou não, a florista comentava com ele que, aquele era um dia especial, pois as rosas nesse dia estavam perfeitas. Talvez ela não soubesse, mas efetivamente eram dias especiais. "Hoje, vou pedi-la em namoro.", "Hoje, vou pedi-la em casamento.", "Hoje, ficámos noivos", "Hoje, vamos casar.", "Hoje, é o seu aniversário.", "Hoje, fazemos um ano de casados.", "Hoje, é dia de S. Valentim.", "Hoje, fazemos cinco anos de casados.", "Hoje fazemos dez anos de casados.", …

Agora sozinho, deixava-se ficar sentado naquele banco, de frente para a água, com a rosa vermelha pousada nas suas pernas. Tanto podia ficar meia hora, como uma hora, dependia. Ela fazia-lhe falta, e por vezes parecia-lhe sentir a mão dEla pousada na sua perna, mas era apenas uma ilusão, apenas isso. Depois levantava-se, e calmamente percorria o caminho que circundava o lago até uma antiga pousada, que do lado oposto, por detrás de uns quantos ciprestes, espreitava aquele espelho de água. Era um edifício comprido, de três pisos, onde na sua fachada cor-de-rosa, as janelas surgiam emolduradas por uma pedra branca, e era encimado por um telhado vermelho vivo feito em telha. Aquela antiga pousada, em tempos abandonada, fora recuperada, transformando-se numa casa de repouso junto ao lago. Não demorara mais de trinta minutos para que ele cruzasse o portão verde de metal que se encontrava aberto. Como sempre fazia, atravessou o jardim no seu passo lento, mas decidido, em direção a um banco que havia perto da margem, voltado para o lago. Nele estava sentada uma mulher de cabelos, agora brancos, mas que, um dia quando a conhecera, haviam sido castanhos, cor de avelã. Caminhou até ao banco e sentou-se ao seu lado. "Olá!", disse ele. "Olá!", respondeu-lhe Ela. "Toma. Hoje, fazemos vinte e cinco anos de casados.", disse ele ao mesmo tempo que, estendendo a mão, lhe oferecia a rosa vermelha que trouxera consigo. Não era verdade. Estavam casados há trinta anos, mas isso ficaria para outro domingo, não aquele. Todos os dias ele ia ter com Ela, mas apenas aos domingos levava consigo uma rosa vermelha para lhe oferecer, e todos os domingos eram uma data especial. "A sério?", foi a resposta dEla.

Tinha sido há trinta anos que se haviam casado e durante todo esse tempo tinham-se amado e sido felizes. Aqueles últimos oito anos eram a prova viva daquele amor, do amor que ele tinha por Ela. Foi por essa altura, quando Ela tinha setenta e quatro anos, que a doença se começou a revelar, e como doença degenerativa que era, não demorou muito para que o Alzheimer fizesse com que Ela se esquecesse dele e da vida em comum vivida a dois. Mas, se Ela se esquecia, o seu amor não desaparecia, pois era como que transferido para ele, que via o seu amor por Ela aumentar a cada dia que passava. Amara-A grande parte da sua vida, e ainda continuava a amá-La. Iria amá-La até um dia ele morrer. Ao seu lado estava Ela. A mulher da sua vida.

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