Segunda Oportunidade (Parte I)
Era de manhã cedo quando o despertador tocou. Ainda não eram sete horas e o quarto, que se fazia iluminar pelos primeiros raios de sol daquela manhã, foi inundado pelo barulho irritante do alarme do despertador. Não precisara dele para acordar pois passara toda a noite acordado, revivendo vezes sem conta aquele pesadelo que se repetia continuamente sem parar.
A cada repetição a sua angústia aumentava, deixando-o num estado de profunda depressão. Levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho. Despiu-se e entrou no poliban para tomar um duche, abrindo de imediato a torneira da água fria. Lá do alto, uma torrente de água gelada caiu sobre o seu corpo, torturando-o, e ele aceitou esse castigo pois merecia-o. Merecia talvez muito mais do que isso.
Deixou que a água caísse sobre ele, permanecendo num estado quase catatónico. Os seus olhos contemplavam o acinzentado do azulejo numa expressão vazia, quase sem vida. Cerca de dez minutos depois levou a mão direita em direção à torneira, não para abrir a água quente, mas sim para a fechar. Saiu do poliban e pegando na toalha que repousava no toalheiro cromado, secou o seu corpo rígido e tenso.
Dirigiu-se para o quarto e abriu o roupeiro. Não precisou de mais de dois minutos para que tivesse vestido umas calças pretas de tecido, uma camisa preta e calçado uns sapatos pretos. Do roupeiro retirou ainda um blazer, também ele preto, e depois de o vestir olhou para o espelho que havia numa das portas. Por momentos não reconheceu o homem que se encontrava diante dele. À sua frente tinha um homem magro, de cerca de cinquenta anos e com um metro e noventa de altura. A sua cara estava abatida. Os seus olhos não tinham expressão e por debaixo destes duas enormes olheiras desfiguravam o seu rosto.
Foi até à sala e pegando num molho de chaves saiu de casa fechando atrás de si a porta do apartamento. Desceu devagar os lanços de escada que o levariam do quarto andar até à rua, onde caminhou com passo decidido, embora não muito rápido. À sua volta o normal bulício de uma cidade numa manhã de quarta-feira. Carros que circulavam apressados de um lado para o outro, motas que deambulavam no meio do trânsito e que faziam ouvir o barulho dos seus escapes acima do barulho do tráfego. Pessoas calcorreavam o passeio num passo apressado de quem vai para o trabalho ou para a escola. Não era o seu caso. Ainda assim tinha para onde ir, mas não tinha pressa de lá chegar. Podia mesmo dizer que não queria lá ir, mas tinha de o fazer. Precisava de o fazer.
Continuou a caminhar serenamente, sem pensar para onde, como se de um autómato se tratasse em que tivesse sido programado aquele percurso. Caminhava completamente indiferente a tudo quanto o rodeava. Quarenta minutos bastaram para que se encontrasse diante de um portão largo e alto, com grades de ferro pretas. Para lá deste, um mundo completamente diferente, um mundo de silêncio.
Parado defronte ao portão, fez um compasso de espera, findo o qual ganhou coragem para avançar. Avançou, e passo a passo, caminhou na sua direção transpondo-o até se encontrar num largo de empedrado branco, de pedra calcária, que havia do outro lado. No meio, um círculo relvado onde uma estátua de mármore branco sobressaía. A toda a volta do largo irradiavam diversas alamedas de onde nasciam diversas ruas, que por sua vez davam origem a ruas mais estreitas, numa malha que havia sido tecida ao longo do tempo.
Atravessou o largo, em direção à alameda que havia em frente. De ambos os lados, altos ciprestes verdes se erguiam, como se de uma guarda de honra se tratassem, projetando a sua sombra ao longo do caminho. Construções brancas, de granito ou de mármore, todas elas encimadas por uma cruz, ou uma águia, tinham sido erigidas ao longo desta, e ali permaneciam, imóveis, numa homenagem silenciosa a quem um dia tinha entrado naquele mundo. Percorreu a alameda, em passo decidido e ao chegar ao fim deparou-se com uma ampla visão sobre a colina que se explanava aos seus pés. Ao longe na paisagem, cerca de quinhentos metros mais abaixo, um pouco descaído para a sua esquerda, um grupo de pessoas encontrava-se reunido, a maior parte delas de costas para ele.
Recomeçou a andar, percorrendo o cemitério na sua direção, tentando manter sempre o seu caminhar firme. A cada passo, sentia as suas pernas cada vez mais pesadas, como que protestando para que ele parasse e não continuasse a percorrer aquele caminho. Mas, tinha de ser forte, tinha que as contrariar. Contrariar as suas fraquezas, seguir em frente, percorrendo aquele caminho, um passo atrás do outro.
Quando faltava apenas uma dezena de metros para alcançar aquele o grupo de pessoas que se mantinha, imóvel e em silêncio, decidiu parar. Permaneceria ali. À sua frente duas a três dezenas de pessoas, a maioria delas vestidas de preto. O silêncio era ensurdecedor.
Por entre aqueles vultos era possível perceber um objeto retangular de cor castanho escura, feito em madeira. Não precisava de se aproximar para saber perfeitamente quem se encontrava dentro daquela urna e isso provocava-lhe um sofrimento atroz. Sentiu as suas pernas a tremer como se a qualquer momento fraquejassem e fossem incapazes de suportar o seu peso. Permaneceu imóvel, incapaz de dar mais algum passo, pois agora as suas pernas pesavam toneladas e não havia forma de as conseguir movimentar.
(Continua ...)