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Escrita Solta

Escrita Solta

20
Dez20

Se o Destino existe (Parte III)

Fernando Varela

Sozinho em casa o tempo demorava a passar e aqueles dois dias até que ele voltasse a passar a sua lista de compras por debaixo da porta demoraram uma eternidade. Parte do tempo passou-o a ver televisão, particularmente as notícias sobre a pandemia, buscando uma qualquer novidade que pudesse acender aquela pequena réstia de esperança em poder voltar novamente a sair. Por vezes, e para tentar se distrair de toda aquela situação procurava um canal que estivesse a dar algum filme, ou um documentário que lhe interessasse. Quando se fartava de ver televisão, ora pegava num livro para ler, ora pegava no seu caderno de apontamentos e começava a escrever. Mais tarde haveria de passar aquelas estórias para o seu computador.

Folheou o caderno e percorreu a dezena de pequenas estórias, de contos, que ele havia escrito. Talvez um dia, depois de toda aquela pandemia passar, quem sabe ele não tentaria publicar um pequeno livro de contos. Releu as últimas folhas que estavam escritas e depois de pensar durante alguns minutos recomeçou a escrever. Ao princípio a sua escrita saía aos solavancos, mas à medida que continuava a escrever sentia que esta se soltava e quase sem dar por isso era como se estivesse viciado, como se nada mais existisse. Era como se não houvesse mais pandemia e ele tivesse sido transportado para um mundo completamente diferente, para o mundo das suas estórias. 

Por fim, e passados que estavam dois dias de ansiedade, eis que chegava novamente o momento de fazer a sua lista de pedidos. Como era seu costume, logo pela manhã, sentado à mesa da cozinha, e enquanto tomava o pequeno-almoço, lá ia escrevinhando naquele quadrado de papel os bens de que ele precisava. Uma vez concluída a lista, levantou-se e encaminhando-se para a entrada do seu apartamento passou o papel por debaixo da porta, para que este ficasse no patamar das escadas. Agora restava-lhe apenas esperar para ver quem lhe viria deixar as compras. O dia passou lentamente, um dia igual a tantos outros a que ele estava obrigado a passar confinado dentro daquela prisão em que se tinha transformado a sua casa.

Com o aproximar do final da tarde começou a prestar atenção aos sons que surgiam vindos das escadas do prédio na tentativa de se aperceber quando aquele benemérito colocaria as suas compras em frente à sua porta de casa. Queria poder agradecer-lhe. Para o fazer, já colocara em cima do móvel que havia no hall de entrada, uma máscara que anteriormente ele havia pedido que lhe comprassem. Passou aquele final de tarde a ver televisão sem som, aproveitando para ver um filme legendado, na esperança de dar conta do instante em que depositassem as compras à sua porta.

Às seis da tarde levantou-se do sofá e dirigiu-se para a porta de entrada. Abriu-a e reparou que o patamar continuava vazio. Quem quer que fosse que lhe fazia as compras ainda não tinha passado por ali, pois não havia no patamar nenhum saco com os seus bens. Voltou-se, e fechando a porta regressou para dentro de casa, para o sofá e continuou a ver o filme a que estava a assistir. Faltavam quinze minutos para as sete da tarde quando, ao ouvir barulho vindo das escadas, se voltou a levantar para verificar se quem poderia ser a pessoa que lhe trazia as compras. Caminhando com a agilidade que o seu corpo permitia, dirigiu-se para a porta de entrada, abriu-a, e no chão, mesmo à sua frente, estava um saco de compras. Sentindo uma presença no patamar, levantou os olhos e reparou que uns metros mais à frente estava uma mulher:

- Boa tarde! – disse ele.

- Boa tarde! – respondeu a mulher que estava à sua frente.

A mulher que estava no patamar era alta e deveria ter cerca de um metro e setenta, tinha cabelo ondulado castanho claro que lhe dava pelos ombros, e uns olhos verdes que a máscara não conseguia esconder e não deveria ter mais de quarenta anos.

 - Como tem passado vizinho? – e depois de uma curta pausa prosseguiu. – Já há algum tempo que não o via!

- Cá estou, nesta maldita prisão! Há mais de três semanas que não saio de casa, que me limito a viver nesta maldita prisão domiciliária. A minha sorte é que há alguém que faz as compras por mim e assim não preciso de sair.

- Ainda bem. Ainda bem vizinho!

- Por acaso não viu quem me colocou aqui as compras? – quis saber ele.

- Não. – respondeu ela. – Mas não sabe quem lhe faz as compras?

- Não. Apenas sei que, no início disto tudo me colocou um papel por debaixo da porta oferecendo-se para me fazer as compras, sem pedir nada em troca. Há três semanas que, de dois em dois dias, de manhã recolhe a lista de bens que deixo ficar no patamar, e ao fim da tarde deixa ficar o saco com as compras. Depois só tenho que transferir para a sua conta o valor que pagou.

- Ainda há bondade neste mundo. Ainda há pessoas que se preocupam com o outro e não apenas com elas próprias. – disse a vizinha.

- Verdade! – respondeu ele. – É por isso mesmo que eu queria descobrir quem me está a ajudar para lhe poder agradecer.

- Lamento, mas não consigo ajudá-lo. Quando aqui cheguei o saco já aí estava e não me cruzei com ninguém nas escadas.

- Não faz mal. Ficará para uma outra altura.

- Já sabe que pode contar comigo se precisar de alguma coisa.

- Eu sei, vizinha. Não tivesse sido alguém a fazer-me as compras e talvez eu tivesse sido obrigado a pedir-lhe ajuda. – fez uma pausa e continuou. – Então, … boa tarde.

- Boa tarde! – respondeu ela ao mesmo tempo que abria a porta de sua casa.

Pegando no saco de compras voltou para dentro, fechando a porta atrás de si. Não se apercebera de ninguém nas escadas a deixar as compras, e agora não havia mais nada a fazer senão esperar pela próxima vez, senão esperar mais dois dias.

A sua rotina era sempre a mesma, dia após dia, e restava-lhe apenas aguardar que o tempo passasse. Dois dias mais tarde, pela manhã, voltaria a colocar a lista de compras no patamar e aguardaria pelo final da tarde para tentar descobrir quem o estava a ajudar. Ainda não eram seis e meia da tarde, quando na ausência de qualquer barulho nas escadas ele decidiu abrir a porta de casa para ver se as compras já lá estariam. Abriu a porta e de imediato reparou que há sua frente, pousado no chão de mármore estava um saco de compras. Foi então que, …, pelo canto do olho se apercebeu de algum movimento e, virando a cara para a direita, viu uma rapariga que descia as escadas e que dava a volta para o lanço seguinte. Era uma rapariga jovem, que não deveria ter mais de doze ou treze anos, de cabelo castanho claro e que vestia uma t-shirt, umas calças de ganga e usava ténis.

Teria sido ela quem lhe colocara as compras à sua porta? Seria por causa dos ténis que ele não ouvia barulho na escada e por isso não sabia quando é que alguém colocava o saco no patamar? Quisera perguntar-lhe mas já não fora a tempo. Não, não podia ser. Não fazia sentido que alguém tão novo se oferecesse para lhe fazer as compras. E como é que alguém daquela idade poderia ter uma conta bancária? A mesma conta bancária para onde ele transferia o dinheiro sempre que alguém lá lhe deixava as compras.

Nos dias que se seguiram, por diversas vezes ele colocara a lista no patamar, e por diversas vezes as compras lhe haviam sido entregues, sempre da mesma maneira, e sem que ele se conseguisse aperceber de quem o fizera. Há mais de um mês que a sua rotina diária se mantinha sempre a mesma, mas nos dias em que ele escrevia a lista de compras sentia-se menos sozinho. Era como se ao escrever aquela lista ele estivesse a comunicar, como se ele estivesse a falar com alguém, e que mesmo sendo alguém que ele desconhecia quem fosse, escrever aquele bilhete fazia com que ele se sentisse menos solitário.

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