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Escrita Solta

Escrita Solta

08
Dez20

Se o Destino existe (Parte II)

Fernando Varela

Olhou para o relógio que estava em cima da sua mesa-de-cabeceira e o mostrador digital luminoso indicava que eram quase nove horas da manhã. Espreguiçou-se e lentamente levantou-se da cama. Foi até à cozinha e preparou uma caneca de café. Sentou-se à mesa da cozinha, e enquanto bebia o café e comia um pão com manteiga, escrevia num papel os bens que necessitava, fossem eles alimentos, medicamentos, detergentes, produtos de higiene pessoal, máscaras, ou até mesmo o jornal do dia.

Quando acabou de escrever a lista reparou que tinha preenchido todo o pequeno retângulo de papel que retirara do bloco. No entanto, havia ainda um pequeno espaço no final da página que ele aproveitou para escrever: “OBRIGADO!”. Levantou-se, e levando o papel consigo foi até à porta da entrada de sua casa e, baixando-se passou o papel por baixo desta para o lado de fora, para o patamar das escadas. De seguida encaminhou-se para a casa de banho, onde depois de observar no espelho uma barba de duas semanas, tomou um duche e vestiu-se. Por volta das sete da tarde, voltaria até junto da porta de entrada, rodaria a chave na fechadura, destrancando-a, e abrindo a porta recolheria o saco que estaria no patamar, à sua espera, com os bens que ele havia listado naquela mesma manhã.

Aquela rotina repetia-se duas vezes por semana. Desde que esta situação começara que, todas as semanas, duas vezes por semana, ele listava num pequeno papel os bens que precisava, e passando-o por debaixo da porta de entrada do seu apartamento, colocava-o no patamar do seu andar. Este papel era depois recolhido por alguém que se encarregava de fazer as compras por si, e ao final do dia, no mesmo patamar, do lado de fora da porta, deixava ficar os bens que ele havia pedido.

Quem lhe fazia as compras ele desconhecia. Apenas sabia que um dia depois do estado de emergência ter começado, alguém fizera passar por debaixo da sua porta, um papel com uma mensagem que lhe mudaria a vida daquele momento em diante. Morava sozinho, e foi no preciso instante em que, devido à necessidade de comprar alimentos, ele se preparava para sair de casa, violando o confinamento obrigatório que lhe havia sido imposto, que reparou num papel azul que estava no chão, aos seus pés.

Baixou-se, pegou no papel e leu-o:

“Vizinho,

sou morador aqui no bairro e se por algum motivo estiver impossibilitado de sair de casa, para comprar bens essenciais, ou se for uma pessoa idosa, e se sair à rua acarretar um risco acrescido para si, estou à sua disposição para fazer as compras de que necessita e deixar aqui à sua porta os bens essenciais que lhe façam falta, garantido assim que tem acesso a estes, de uma forma segura, sem necessidade de sair de casa, não colocando a sua vida em risco, desnecessariamente.

Para tal, bastará apenas que, de manhã, coloque no patamar, no exterior da sua porta, uma listagem dos bens que precisa para que eu possa fazer as compras por si. No final do dia, deixarei ficar à sua porta o saco com as compras, bastando depois transferir para esta conta bancária o valor da fatura que estará junto dos seus bens.

Estou aqui para o ajudar, pelo que lhe peço para não correr riscos desnecessários.

Disponha.”

E assim, já havia três semanas que não saía de casa. Havia três semanas que estava completamente enclausurado em casa.

Não sabia quem lhe fazia as compras que ele necessitava. Apenas sabia que havia alguém que morava naquele bairro que se voluntariara, num ato de solidariedade, e lhe comprava tudo aquilo que ele escrevia no papel que deixava no patamar. Alguém que o fazia sem receber nada em troca, apenas e só para que ele, já com mais de setenta anos, não tivesse que sair à rua e colocasse a sua própria vida em risco.

Mas aquele gesto era mais do que isso. Aquele gesto era mais do que apenas alguém que se voluntariara para lhe fazer as compras. Aquele gesto era um ato de humanidade, um ato de amor ao próximo, um ato de altruísmo numa sociedade que no ritmo louco do dia-a-dia se tornara egoísta e egocêntrica, onde apenas o bem-estar próprio se tornara importante e nada mais interessava. Aquele ato era uma réstia de esperança que, uma vez passada aquela pandemia, e depois de tudo voltar ao normal, talvez a sociedade aprendesse a lição que lhe havia sido imposta pela natureza e se tornasse mais justa e solidária, onde mais importante que o bem-estar próprio fosse o bem-estar da comunidade, e onde o altruísmo e a solidariedade imperassem sobre o egoísmo e o egocentrismo que predominavam.

Os seus dias eram assim passados em casa, sem que pudesse sair à rua, sem que pudesse passear por aquela cidade, sem que se pudesse sentir livre. Com as devidas comparações era como se ele vivesse numa “prisão domiciliária”, como se ele estivesse preso, só não tendo uma pulseira. Em boa verdade a sua casa havia-se tornado a sua prisão e aquele maldito vírus era o seu carcereiro impiedoso, que o obrigava a cumprir uma pena duríssima para um crime que ele não havia cometido. Qual fora o seu crime? O que é que ele havia feito para que tivesse que suportar tamanho castigo?

A sua vida não havia sido fácil, e agora que vivia sozinho, ainda menos o era. Filho único, perdera o seu pai aos dezassete anos e mais tarde a sua mãe quando já tinha sessenta anos. Aos trinta, havia casado e desse casamento viria a ter um filho com quem já não falava ia para quinze anos depois de uma desavença entre os dois. Agora vivia sozinho desde que a sua mulher falecera há onze anos atrás. Desde esse dia que também parte dele tinha morrido e daí em diante havia-se fechado e afastado dos poucos amigos que ainda tinha. Sem amigos, sem mulher ou família próxima, e sem falar com o filho ia para quinze anos, restava-lhe apenas lutar como sempre fora obrigado a fazer desde os seus dezassete anos. Muitas vezes pensava, como a vida tem sido cruel para ele.

Mas aquele papel por debaixo da porta tudo havia mudado, e agora havia alguém, que ele desconhecia quem fosse, que se prontificara a ajudá-lo sem pedir nada em troca, o que lhe facilitava a vida já de si penosa e solitária e a que se tinha juntado aquela prisão forçada. Não sabia como explicar, mas no meio de toda aquela solidão, mais do que apenas alguém que lhe fazia as compras, era como se fosse a única forma de comunicar que tinha para com o exterior. É certo que aquilo que ele escrevia no papel não passavam de simples listas de bens e o que recebia em troca era apenas um saco com as suas compras e a fatura correspondente, mas sentia que era mais do que isso.

Agora ali fechado em casa, preso, sem poder sair, praticamente vivia para aqueles momentos de uma tão simples e básica comunicação, que mesmo sem outras palavras traziam em si toda a sua gratidão, o amor e altruísmo de quem se oferecera para o ajudar. Por vezes, sentava-se no sofá da sala, fechava os olhos e tentava imaginar o rosto de quem o estaria a ajudar. Seria homem? Seria mulher? Que idade teria? Vinte anos? Trinta anos? Quarenta anos? E como seria a sua cara? Seria alto ou baixo? Seria gordo ou magro? O seu cabelo seria escuro, talvez preto ou castanho, ou por outro lado seria claro, talvez loiro? Nada disso importava. Apenas importava que havia alguém que se predispusera a ajudá-lo, e muito provavelmente não só a ele mas também a muitas outras pessoas que se encontrassem na mesma situação, que estivessem impossibilitadas de sair de casa.  

Os dias passavam e a sua rotina era sempre a mesma, fechado em casa, enclausurado. Quando não estava a dormir à noite, ou a preparar as suas refeições, ora passava os seus dias a ver televisão, ora a ler um livro ou talvez o jornal do dia, ora fazia palavras cruzadas, ora se sentava ao computador e escrevia. Gostava de escrever. Desde sempre que gostara de o fazer, fossem estórias de ficção imaginadas, fossem meros relatos, descrições, do que fora o seu dia, do que sentia, ou apenas uma simples lista de bens, que mais tarde faria passar por debaixo da porta.

A tarde já ia adiantada quando foi até à janela espreitar o que havia para além daquele seu calabouço de betão. Afastou a cortina e diante dele surgiu uma visão aterradora. À sua frente, do outro lado da vidraça, havia uma rua deserta, sem vivalma. Parecia que o tempo tinha parado. Parecia que alguém tirara uma fotografia e colocara diante da janela de sua casa. Deixou-se ficar ali cerca de dois minutos e durante todo esse tempo aquela visão apocalíptica não se alterou. Não viu ninguém cruzar a rua, fosse a pé, ou fosse de carro.

Deixou-se ficar à janela, perdido nos seus pensamentos e com os seus olhos a vaguearem no horizonte. Como era possível que em tão pouco tempo, no espaço de alguns meses a vida tivesse mudado tanto. Não só a sua vida, mas a vida da sua rua, da sua cidade, do seu país. A vida de um planeta inteiro. Como era possível que uma coisa tão pequena, tão minúscula que era invisível a olho nu, pudesse ter um efeito tão devastador.

Abriu a janela e sentiu um arrepio, não porque estivesse frio, mas pela ausência de barulho, pelo silêncio sepulcral que cobria a cidade. Estava habituado a viver sozinho mas não habituado àquilo, toda aquela solidão, toda aquela falta de movimento, toda aquela falta de vida. Sentia falta do barulho da cidade, das buzinas dos automóveis, do som das crianças a brincar na rua. Sentia falta daquele burburinho do bulício da cidade. Olhou para o relógio e reparou que passavam vinte minutos das sete da tarde. Fechou a janela e voltou para dentro de casa encaminhando-se na direção da porta de entrada do apartamento. Ao chegar ao hall, pegou nas chaves de casa, que estavam no móvel da entrada, e destrancou a porta, abrindo-a lentamente.

No patamar, e como de costume, mesmo à sua frente, no chão, um saco de compras esperava por ele. Esperava que ele o recolhesse. Pegou no saco e entrando em casa fechou a porta atrás de si. Foi até à cozinha e começou a tirar para cima da mesa os bens que estavam no interior do saco. No fundo deste ficaram dois papéis. Reparou que um era a fatura da compra que tinham efetuado, mas o outro era diferente, era um papel escrito à mão com uma esferográfica azul. Pegou no papel, e ajeitando os óculos que usava leu-o: “Uma vez mais aqui lhe deixo ficar as suas compras. Espero que esteja tudo conforme pediu. Estou aqui para o auxiliar, pelo que lhe peço que não hesite em pedir ajuda sempre que precisar. Cumprimentos.”

Uma vez mais, alguém que ele desconhecia o ajudava nas suas compras sem lhe pedir nada em troca, apenas e só pela vontade de ajudar o próximo. Haviam passado três semanas e ele continuava sem saber quem o estava a ajudar. Foi então que ele decidiu tentar descobrir quem seria aquela pessoa misteriosa que dispensava o seu tempo para evitar que ele arriscasse a sua vida.

(continua)

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