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Escrita Solta

Escrita Solta

02
Dez20

Se o Destino existe (Parte I)

Fernando Varela

Era de manhã cedo, quando deu por si a despertar. Lá fora o dia raiava e, lentamente, sem que nada o pudesse impedir, a claridade começava a invadir o seu quarto. Sempre gostara de dormir com a persiana aberta deixando que a luz do dia o acordasse, e naquela noite não havia sido uma exceção. Pela janela podia ver um límpido céu azulado sem quaisquer vestígios de quaisquer farrapos brancos nele dependurados.

Outrora, àquela mesma hora estaria ele a levantar-se, iria até à casa de banho, onde numa série de movimentos automáticos, e já há muito memorizados, faria a barba para que de seguida tomasse um duche rápido. Dez minutos mais tarde, depois de se vestir, na cozinha beberia uma chávena de café forte, ao mesmo tempo que comeria duas fatias de pão acabadas de torrar, barradas com manteiga e cobertas com marmelada.

(continua)

Outrora, não precisaria mais do que trinta minutos para que estivesse pronto e saísse de casa rumo ao seu emprego. Assim o fizera dia após dia, mês após mês, ano após ano, apenas regressando a casa ao final do dia.

Outrora havia sido assim, mas o tempo não o perdoara, e lentamente, quase sem que ele desse por isso, havia-se encarregado de levar a sua jovialidade. O tempo havia passado, sem nunca parar. O tempo nunca para. Agora com setenta e oito anos, reformado, já não precisava de se levantar de manhã cedo para ir trabalhar. Todas as manhãs ao acordar, aproveitava para ficar deitado na cama durante mais algum tempo. Ficava deitado olhando pela janela do quarto, quer lá fora estivesse um céu azul, quer estivesse um céu repleto de nuvens cinzentas e a chuva caísse abundantemente, batendo com estrondo nas vidraças da sua casa.

Agora que não tinha mais aquela jovialidade, deixava-se ficar deitado, como se o seu corpo precisasse de ganhar coragem para se levantar, e ele, não se sentindo com força suficiente para o contrariar, deixava que o seu corpo levasse a sua avante, permanecendo deitado. Era pois normal acordar com o raiar do dia, para apenas se levantar quando na rua, movimentada por sinal, já se sentia o passar ininterrupto dos carros, as buzinadelas quase incessantes e a agitação de uma cidade em permanente movimento.

Agora tinha por hábito levantar-se por volta das nove horas, e os outrora trinta minutos que demorava a arranjar-se para sair de casa, haviam-se transformado em uma hora, pelo que, pelas dez horas da manhã costumava sair de casa para dar um passeio pela cidade. Caminhava devagar, não porque as suas pernas a isso o obrigassem, mas apenas porque gostava de viver aquela cidade que era a sua, de sentir o seu pulsar, de se deixar inebriar por todos aqueles cheiros e sons, por todas aquelas cores, pela sua luz e pelo seu movimento. Atravessava a cidade até à margem do rio, onde tinha por costume sentar-se num banco de rua observando os barcos, que deixando um rasgo de espuma branca à sua ré, o atravessavam de um lado ao outro. Por vezes via passar os cruzeiros, verdadeiros gigantes dos mares, que quase diariamente subiam a foz do rio e atracavam na margem, um pouco mais acima, para largarem os seus turistas. Em dias de sorte, podia passar a manhã inteira a ver barcos à vela, ou mesmo veleiros de maior dimensão, que engalanados e de velas ao vento, passeavam no rio, em regatas para cima e para baixo. Outras vezes caminhava até um dos jardins e por lá ficava grande parte da manhã, sentado num banco de jardim, fosse observando as crianças que por ali brincavam, ou as pessoas que por ali passavam, ou fosse de frente para algum lago que por ali existisse, observava os bandos de patos que, ora nadavam, ora passeavam na margem do lago. 

Hoje porém não seria assim. Aliás, nas últimas três semanas nem por uma única vez houvera um desses dias. Três semanas, três longas semanas. Esse era o tempo que ele estava confinado em casa, sozinho e sem poder sair. Havia três semanas que, devido a uma pandemia provocada por um vírus que repentinamente chegara do oriente, tinha sido declarado o estado de emergência e desde então que ele não podia sair de casa. Ainda lhe parecia um sonho, ou melhor dizendo, um pesadelo, mas o que era certo é que ele estava preso dentro de casa, sem poder sair.

Se há dois meses atrás lhe dissessem que ele iria ficar preso em casa, refém de um maldito vírus, ele diria que estavam a gozar com ele, mas o facto é que agora nada mais lhe restava do que estar confinado àqueles escassos metros quadrados que tinha o seu apartamento, sem poder vir à rua, sem passear pela cidade, sem poder ir até junto do rio, sem poder ir ao jardim, sem poder sentir o sol percorrer a sua cara ou o seu corpo, e caminhar sentindo a brisa que o rodeava e o envolvia. Agora, com a chegada daquele vírus invisível tudo isso havia mudado.

Ninguém sabia como aquela doença começara. Ninguém sabia como aquele maldito vírus havia surgido. Apenas se sabia que a pandemia tinha surgido no oriente e que rapidamente se espalhara pelo planeta inteiro provocando o completo caos em todos os países por onde passava. Irrompera de repente, não se sabe surgido de onde, e atacava as vias respiratórias, em particular os pulmões, onde uma vez instalado provocava uma pneumonia, chegando a levar à morte nos casos mais graves. Ainda que a sua taxa de letalidade não fosse muito elevada, era na população mais idosa e debilitada que o vírus se tornava mais agressivo e mortífero e isso fora suficiente para que o estado de emergência tivesse sido decretado.

Apesar de pouco afetar a população mais jovem, o efeito deste vírus era devastador na população mais idosa, e uma vez que não havia uma vacina para o prevenir, nem tão pouco algum medicamento que se mostrasse eficaz no seu tratamento, pouco mais restando aos médicos do que ventilar os doentes, evitar a propagação do vírus era assim a forma mais eficaz de prevenir os seus efeitos nefastos.

Lembrava-se como se fosse hoje. Era uma sexta-feira à noite e estava na sala a assistir às “Notícias às Oito”, quando de repente, por detrás do jornalista que naquele instante ia dando o relato sobre a situação da pandemia, surgiram as palavras “ÚLTIMA HORA!”. Quase em simultâneo o apresentador do noticiário interrompeu o que estava a dizer para anunciar que fora decretado o “ESTADO DE EMERGÊNCIA”. Isso significava a paragem quase por completo de todas as atividades económicas, o fecho de todas as lojas, dos cinemas, dos teatros, das piscinas, dos parques, dos museus, das escolas, das universidades, dos cafés, dos restaurantes. Na prática, significava que tudo fechava apenas com exceção para os serviços essenciais como as lojas, supermercados e hipermercados onde a população se pudesse abastecer de alimentos, ou as farmácias onde pudessem adquirir os seus medicamentos e bens essenciais à sua proteção, como máscaras e desinfetantes à base de álcool.

Mas o “ESTADO DE EMERGÊNCIA” significava mais do que isso. Não só a população estava obrigada a permanecer em casa, apenas se deslocando para adquirir bens essenciais, como as pessoas com mais de setenta anos estavam especialmente obrigadas ao confinamento no interior das suas residências, pois era esta a faixa etária que era mais ameaçada pelo vírus, sendo aconselhada a pedir auxílio, sempre que possível, para que alguém lhe levasse os bens essenciais, evitando assim ter que sair à rua. 

Ficou incrédulo com o que estava a ver na televisão e não queria acreditar no que os seus olhos e ouvidos tinham acabado de ver e ouvir. A partir daquele instante, e por tempo indeterminado, estava impossibilitado de sair de casa. A partir daquele instante estava refém daquele maldito vírus. A partir daquele instante estava prisioneiro na sua própria casa.

(continua)

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