Lago da Memória (Parte I)
Era um domingo como tantos outros. Levantara-se de manhã cedo, arranjara-se, tomara o pequeno-almoço e antes das nove horas estava a sair de casa. Ia para cinco anos que continuava a fazer aquela rotina, todos os domingos, ainda que agora o fizesse sozinho. Outrora fizera-o com ela. Saíam os dois de manhã cedo, de braço dado, passeando junto ao lago. Faziam-no calmamente, sem pressa, aproveitando para recordar os momentos especiais que viveram juntos. Em dias de bom tempo, chegavam mesmo a passar toda a manhã sentados num banco de madeira, que havia de frente para o lago, sem que dessem pelo passar do tempo. Mas há cinco anos, tudo mudara. Agora, mesmo com oitenta anos, ele continuava a fazê-lo, ainda que sozinho.
Saiu de casa e caminhou em direção ao lago. Era uma manhã de outono. No ar, aquele cheiro característico de neblina e de folhas molhadas. Na sua mão, levava uma rosa vermelha, linda, perfeita. " As rosas hoje estão lindas. Estão mais perfeitas do que nos outros dias. Hoje deve ser um dia especial. As rosas pressentem-no, sabia? ", dissera-lhe a florista. "É verdade.", respondera ele, "Hoje, fazemos vinte e cinco anos de casados.". Sempre que comprava uma rosa, coincidência, ou não, a florista comentava com ele que, aquele era um dia especial, pois as rosas nesse dia estavam perfeitas. Talvez ela não soubesse, mas efetivamente eram dias especiais. "Hoje, vou pedi-la em namoro.", "Hoje, vou pedi-la em casamento.", "Hoje, ficámos noivos", "Hoje, vamos casar.", "Hoje, é o seu aniversário.", "Hoje, fazemos um ano de casados.", "Hoje, é dia de S. Valentim.", "Hoje, fazemos cinco anos de casados.", "Hoje fazemos dez anos de casados.", …
Agora sozinho, deixava-se ficar sentado naquele banco, de frente para a água, com a rosa vermelha pousada nas suas pernas. Tanto podia ficar meia hora, como uma hora, dependia. Ela fazia-lhe falta, e por vezes parecia-lhe sentir a mão dEla pousada na sua perna, mas era apenas uma ilusão, apenas isso. Depois levantava-se, e calmamente percorria o caminho que circundava o lago até uma antiga pousada, que do lado oposto, por detrás de uns quantos ciprestes, espreitava aquele espelho de água. Era um edifício comprido, de três pisos, onde na sua fachada cor-de-rosa, as janelas surgiam emolduradas por uma pedra branca, e era encimado por um telhado vermelho vivo feito em telha. Aquela antiga pousada, em tempos abandonada, fora recuperada, transformando-se numa casa de repouso junto ao lago. Não demorara mais de trinta minutos para que ele cruzasse o portão verde de metal que se encontrava aberto. Como sempre fazia, atravessou o jardim no seu passo lento, mas decidido, em direção a um banco que havia perto da margem, voltado para o lago. Nele estava sentada uma mulher de cabelos, agora brancos, mas que, um dia quando a conhecera, haviam sido castanhos, cor de avelã. Caminhou até ao banco e sentou-se ao seu lado. "Olá!", disse ele. "Olá!", respondeu-lhe Ela. "Toma. Hoje, fazemos vinte e cinco anos de casados.", disse ele ao mesmo tempo que, estendendo a mão, lhe oferecia a rosa vermelha que trouxera consigo. Não era verdade. Estavam casados há trinta anos, mas isso ficaria para outro domingo, não aquele. Todos os dias ele ia ter com Ela, mas apenas aos domingos levava consigo uma rosa vermelha para lhe oferecer, e todos os domingos eram uma data especial. "A sério?", foi a resposta dEla.
Tinha sido há trinta anos que se haviam casado e durante todo esse tempo tinham-se amado e sido felizes. Aqueles últimos oito anos eram a prova viva daquele amor, do amor que ele tinha por Ela. Foi por essa altura, quando Ela tinha setenta e quatro anos, que a doença se começou a revelar, e como doença degenerativa que era, não demorou muito para que o Alzheimer fizesse com que Ela se esquecesse dele e da vida em comum vivida a dois. Mas, se Ela se esquecia, o seu amor não desaparecia, pois era como que transferido para ele, que via o seu amor por Ela aumentar a cada dia que passava. Amara-A grande parte da sua vida, e ainda continuava a amá-La. Iria amá-La até um dia ele morrer. Ao seu lado estava Ela. A mulher da sua vida.