Foi então que num desses dias em que ele havia colocado a lista por debaixo da porta que, pouco depois das seis da tarde ele se apercebeu de um ligeiríssimo ruído que vinha das escadas e encaminhando-se até à porta do apartamento, abriu-a. Em frente a ele estava uma jovem de cabelo castanho claro. Vestia umas calças de ganga, uma t-shirt preta e calçava uns ténis brancos. Naquele preciso instante estava a pousar um saco de compras em frente à porta de sua casa. Agora que podia ver melhor aquela jovem, que no outro dia apenas tinha visto de relance a descer as escadas, e apesar de parte do seu rosto estar coberto por uma máscara, conseguia agora confirmar a impressão que tivera anteriormente de que ela não teria mais de treze anos.
- Olá! – disse ele.
- O-olá!!! – respondeu a rapariga, ligeiramente envergonhada.
- Tens sido tu quem me tem trazido as compras? – quis saber ele.
- S-sim!!!
- Então, és tu quem me tem estado a ajudar todo este tempo?
- S-sim, …, n-não, …, …,
- Sim!? Não!? – o rosto dele, também por detrás de uma máscara, denotava que ele não estava a perceber a resposta que a jovem rapariga tinha acabado de lhe dar.
- B-bem, …, na verdade sou eu quem lhe vem aqui trazer as compras, quem as coloca aqui no patamar das escadas, mas …,
- Mas, … !? – continuava ele a inquirir.
- Mas, …, na verdade quem o está a ajudar é …, é …, é o meu pai. É ele quem faz as suas compras.
- Então, é a ele a quem eu pago quando faço a transferência bancária?
- Sim. Eu apenas me limito ajudá-lo a distribuir as compras pelas várias pessoas deste bairro para quem ele faz compras.
- Compreendo! – disse ele, e depois de uma ligeira pausa continuou. – E sabes por que razão o teu pai faz isto.
- Acho que sim. Deve ser pela mesma razão que eu o estou a ajudar.
- A sério!?
- Sim. Acho que o faz …, por ter percebido que haveria muitas pessoas que arriscariam a sua vida ao saírem para fazer compras, pois a sua idade poderia representar um grave perigo caso ficassem contagiados. Assim, e como ele é mais novo, e …, eu também, podemos fazer as compras sem corrermos esse perigo e assim evitarmos que pessoas como …, o senhor …, pessoas mais idosas corram esse risco.
- O-obrigado!
Por detrás da máscara que usava na cara sentiu que o seu rosto ruborescer e o marejar dos seus olhos, emocionado com o que aquela jovem acabara de lhe dizer.
- Sabes uma coisa? Fazes-me lembrar o meu filho!
- A sério? Porque diz isso?
- Ele era assim como tu. Ele era uma pessoa muito humana, sempre muito preocupado com os outros, sempre preocupado em ajudar, especialmente as pessoas mais idosas, …, pessoas que eram como eu sou agora, …, um idoso.
- Mas, …, o seu filho morreu?
- Não, …, acho que não.
Naquele preciso instante sentiu que uma lágrima se soltava e descia pelo seu rosto abaixo até se enxugar na máscara que lhe cobria a boca e o nariz
- Acha!? …, mas …, não tem a certeza?
- Não vejo o meu filho, nem falo com ele, vai para quinze anos.
- Mas porque não se falam? – quis saber a rapariga.
- Sabes, …, por vezes acontece as pessoas zangarem-se, e …, há algumas zangas que são maiores e acabamos por ficar sem falar uns com os outros. Isso não quer dizer que deixemos de gostar da pessoa, apenas que deixámos de falar durante algum tempo.
- Mas porque não fizeram as pazes?
- Não sei. Acho que por orgulho. Ambos somos muito orgulhosos e isso impediu que um de nós pedisse desculpa. Depois o tempo foi passando. Sabes, …, o tempo não para e a dada altura eu perdi o seu contacto, e hoje não sei nada acerca dele, nem …, nem tão pouco como o contactar. Hoje, …, se eu quisesse falar com ele não saberia como o fazer.
- Não fique assim! – disse-lhe a rapariga ao reparar que chorava. – Vai ver que um dia o seu filho virá ter consigo e vão fazer as pazes e ficarão novamente amigos.
- Obrigado, …, mas …, não sei se será assim tão fácil.
- Porque diz isso? – quis saber ela.
- Sabes, quando a minha mulher morreu foi quando eu o vi pela última vez. No seu funeral. Ele estava lá com a mulher e com uma filha pequena. Não nos falámos. Uns anos mais tarde eu acabei por mudar de casa e agora muito dificilmente ele saberá onde vivo. Acho que um dia irei morrer sem nunca voltar a falar com ele. Sem nunca conhecer a minha neta.
- Não diga isso. Vai ver que um dia ainda o vai encontrar e …, vai conhecer a sua neta.
- Gostava muito, mas não sei se será possível.
- Vai ver que sim.
- Obrigado! – disse ele, e fazendo uma curta pausa continuou. – Gostei muito de falar contigo mas …, o teu pai deve estar à tua espera.
- É verdade. Adeus! – disse ela ao mesmo tempo que começava a descer a escada.
Ainda não tinha chegado ao fim daquele lanço quando se voltou para trás e lhe perguntou:
- Da próxima vez que eu vier posso tocar-lhe à campainha para falarmos mais um pouco?
- Claro que sim. – respondeu ele.
Ao mesmo tempo, e por debaixo da máscara, o seu rosto esboçava um sorriso e aproveitando enquanto ela estava ali parada, ele perguntou:
- Achas que o teu pai poderia vir aqui? Gostava de falar com ele. Gostava de lhe agradecer tudo o que tem feito por mim.
- Acho que sim! – respondeu ela. Ao mesmo tempo recomeçava a descer as escadas e sorrindo disse. – Adeus!
- Adeus! – retorquiu ele e voltando para dentro de casa fechou a porta atrás de si.
Ao regressar à sala sentia-se feliz, como se aquela pequena conversa tivesse acabado com toda a solidão que ele sentia. Como ele gostara de falar com aquela rapariga. Como ele gostara de ver que, afinal ainda havia jovens solidários que se preocupavam com os outros. Aqueles poucos minutos de conversa, e a expectativa de voltar a falar com ela haviam curado semanas de solidão, embora agora aquele seu sentimento de felicidade começasse lentamente a ser substituído por um sentimento mais forte. Um sentimento de saudade, um sentimento de angústia, ou talvez de remorso, pelos anos que haviam passado sem falar com o filho, sem conhecer a sua neta, e pior do que tudo, por saber que muito provavelmente um dia iria morrer sem voltar a falar com ele, sem chegar a conhecer a sua neta.
De tal forma estes sentimentos o apertavam num abraço de dor que não se apercebeu de imediato do tocar da campainha. Demorou alguns segundos até que se apercebesse do toque da campainha. Levantou-se e foi até à porta abrindo-a. À sua frente, e por detrás de um grande sorriso, estava aquela rapariga que lhe levava as compras e com quem ele estivera a falar alguns minutos antes. Ao seu lado, e de máscara no rosto, estava um homem, que só poderia ser o seu pai, a pessoa que o vinha ajudando ao longo das últimas semanas.
- Obrigado! Queria agradecer-lhe a sua ajuda ao longo, …, destas últimas …, …, semanas …, …,
A sua voz começou a ficar embargada. As palavras não queriam sair da sua boca e a cada segundo que passava o esforço que fazia para falar era cada vez maior, e tudo isto porque ele não queria acreditar no que os seus olhos estavam a ver naquele preciso instante. “Não! Não era possível!”
- FILHO !? …
- PAI !? …
Por momentos ficaram os dois a olhar um para o outro, depois de se terem reconhecido por detrás da máscara que ambos usavam a cobrir o rosto. À sua frente estava também a sua neta, a neta que ele nunca conhecera e que olhando alternadamente para o pai e …, para o avô, começara a chorar. As lágrimas corriam-lhe rosto abaixo. Não eram lágrimas de tristeza mas sim de alegria, de alegria de ter conhecido o seu avô, mas acima de tudo por este poder voltar a ver o seu filho e de os dois poderem voltar a falar um com o outro. De fazerem as pazes.
Ele estava incrédulo com o que se estava a passar.
Como era possível que de repente sem que nada o fizesse prever o seu filho estivesse novamente à sua frente? Como era possível que sem o saber, quando ele mudou de casa, e sem o saber, acabou por ir havia ido morar para o mesmo bairro onde morava o filho? Como era possível que ao longo de tantos anos nunca os dois se houvessem cruzado naquelas ruas? Naquele instante todo um turbilhão de perguntas circulava dentro da sua cabeça e não havia uma única explicação lógica para cada uma delas. A única explicação para tudo aquilo que estava a acontecer não era lógica, não era racional. A única explicação que naquele momento lhe ocorria era o destino. Só assim. Só se o destino existe é que tudo poderia ser explicado e, apenas o destino poderia fazer com que naquele preciso instante, ali mesmo, à sua frente, pudesse estar o seu filho, com quem há muitos anos não falava, e …, ao seu lado …, a sua neta.